14 de setembro de 2016

O trânsito maluco


Tantas coisas acontecem comigo todos os dias que, na maior parte do tempo, não sei como dividir ou juntar tudo para transformar em um texto coeso; já certas coisas acontecem tanto que eu acabo esquecendo de escrever sobre, então vou dedicar o texto de hoje às situações mais comuns do meu cotidiano em Changchun – percebam que eu não disse China, pois existem algumas peculiaridades nessa cidade em que moro.

O trânsito é, decerto, o aspecto mais peculiar dessa cidade. Eu costumava achar o trânsito de Natal bastante caótico, em especial durante os horários de pico, mas depois de morar em Changchun, dirigir em Natal parece ser a coisa mais segura e tranquila do universo. Isso porque aqui, além do péssimo hábito de buzinar o tempo todo, por qualquer coisa (se um pedestre está a 10 metros, eles buzinam, se está a 100 metros buzinam também para garantir; se um pedestre pisa na rua; se um pedestre pensa em pisar na rua; se o carro do lado se aproxima demais; se o motorista acha que existe o risco do carro ao seu lado se aproximar demais; se o carro do lado buzina para você; se um ônibus se aproxima demais; se um ônibus buzina para você;), e chega a irritar bastante, porém, em muitos casos, é compreensível, pois a quantidade de buzinas é proporcional à quantidade de loucuras que eles cometem. Já não sei mais se as leis de trânsito são as mesmas em todos os países, porque os motoristas de Changchun são tão descuidados que parecem viver sob suas próprias leis. Antes de mais nada, quando querem atravessar uma rua movimentada, eles apenas vão. Não é como em Natal, que a gente vai entrando aos poucos. Não, eles entram com velocidade. E o mais interessante é que os outros motoristas conseguem reagir a tempo e, claro, buzinar bastante.

Mas o pior de tudo, na minha opinião, sobre o trânsito daqui é que os motoristas não param o carro a não ser que o sinal esteja vermelho. Se você é um pedestre parado na faixa, esperando para atravessar a rua, tenha a certeza de que vai esperar para sempre. Os únicos casos em que vi um carro parar para os pedestres nessa cidade foram quando tinham pessoas demais e eles não tinham alternativa – aconteceu duas vezes. O que eles fazem, quando veem que alguém está atravessando – além de buzinar muito, obviamente – é diminuir um pouco a velocidade, e o pedestre que se cuide para não ser atropelado. Ou então, muitas vezes, eles desviam das pessoas. Parar o carro jamais.

Queria estar brincando ao dizer que toda vez que atravesso uma avenida movimentada em segurança eu dedico um momento para agradecer ao universo por ainda estar viva, porém é a mais pura verdade. O número de vezes em que quase fui atropelada é tão alto que nem consigo pensar em exemplos, já virou algo tão cotidiano quando abrir os olhos de manhã. Na maior parte do tempo o que acontece é o carro passar muito perto de mim, a ponto de dar um susto enorme e “tirar um fino” assustador. Isso, entretanto, são os carros. Com as motos é outra história.
 
Talvez pela grande quantidade de carros nas cidades, muitas pessoas aqui preferem andar de moto – muitas calçadas, inclusive, contam com uma pequena estrada no meio que, creio eu, tem o objetivo de servir para as motos, bicicletas e etc. Se com os carros eu corro perigo, com as motos eu nem sei dizer. Todos os dias, quando estou andando pela calçada, acontece de uma moto me surpreender e passar raspando em mim. A primeira vez em que isso aconteceu foi quando eu estava trabalhando no interior de outra cidade, e pensei que era só porque era um local pequeno, as pessoas não eram tão educadas, algo assim. Mal sabia eu que aquilo se tornaria uma situação rotineira na minha vida. Não é nada que chegue a me machucar, mas, diferente do que ocorre com os carros, na maioria das vezes as motos chegam a me tocar, raspar em uma perna ou na mochila.

Eu sou do tipo de pessoa que se assusta com facilidade, então até que eu me acostumasse com o modo de funcionamento do trânsito de Changchun, cada buzina próxima demais era seguida de um grito e um pulinho. Agora já me sinto uma pedestre profissional: atravesso na frente dos carros com muita ousadia e sem medo de ser atropelada; atravesso independente do sinal estar verde ou vermelho – porque agora meus instintos de pedestre profissional permitem que eu sinta a hora certa de atravessar com segurança – e, o mais importante, não atravesso correndo, porque correr é para pedestres amadores que não sabem calcular o tempo que os carros vão levar antes de serem obrigados a diminuir a velocidade para não atropelar você. Não sei dizer se levo muitas buzinadas, porque, como pedestre profissional, eu também não me importo mais com elas. Se começam a irritar demais, aumento o volume da música – sempre caminho de fones de ouvido – e continuo meu caminho.

Apesar dos supostos perigos, eu ainda prefiro andar pela cidade do que pegar o ônibus ou o metrô. Isso por uma série de razões: em primeiro lugar, não me sinto segura o suficiente para andar para todos os lugares em Natal como faço aqui, então gosto de aproveitar essa liberdade; em segundo lugar, a cidade é linda e eu amo poder andar ao redor e conhecê-la melhor; em terceiro lugar, estou engordando bastante porque a comida daqui é maravilhosa, sendo assim andar acaba sendo uma ótima maneira de me exercitar. No primeiro projeto que realizei era preciso trocar de escola toda semana, então eu não achei que seria válido o esforço de ter que aprender um novo caminho toda vez, fora que eu precisava trabalhar durante a manhã e os riscos de me atrasar por estar perdida eram bem grandes, por isso nessa primeira etapa optei por andar de ônibus e de metrô. Nesse novo projeto, porém, estou em um lugar fixo, e todos os dias acordo muito animada para minha caminhada de duas horas de ida e duas horas de volta para casa.

A escola na qual trabalho agora está localizada a cerca de dez quilômetros da minha casa e minhas caminhadas para lá são, decerto, uma das melhores partes do meu dia. Em especial porque nenhum dia é igual. Cometi o erro, no primeiro dia, de pensar que essas caminhadas se tornariam algo rotineiro e comum, que eu não sentiria o mesmo prazer de fazer aquilo, pois seria todo dia a mesma coisa. Atendendo a um pedido antigo que eu, inclusive, registrei no meu primeiro texto sobre a China, o destino me trouxe um pouco mais de “azar”, na mesma forma que o anterior, sem dinheiro dessa vez. No dia seguinte ao meu pensamento foi anunciado que um tufão estava vindo para Changchun.

Se não fosse pela experiência maravilhosa que tive em Pequim no dia da grande chuva, provavelmente eu não teria aproveitado aquela caminhada tanto quanto aproveitei. Andei debaixo de chuva e vento forte durante quatro horas naquele dia, as melhores horas do dia, que me trouxeram lembranças maravilhosas da minha primeira semana na China e dos meus amigos que já não estão mais aqui. A probabilidade de eu estar parecendo uma louca para qualquer pessoa que olhasse para mim naquela tarde era bem alta, pois eu estava tão feliz que passei a caminhada inteira rindo à toa, cantando alto e saltitando por entre as poças de lama. Nesse dia eu estraguei tanto meus sapatos que na volta para casa simplesmente desisti de desviar das poças de água, pois eles já estavam encharcados mesmo.

Pareceu uma ironia muito grande um dia que deveria ter sido comum se transformar em algo tão bom e essa coisa tão boa ser justamente uma tempestade. Só sei que a China me fez amar a chuva. E a melhor parte é que eu nem fiquei doente e, no dia seguinte, o trabalho foi cancelado e pude sair com minha host-sister. Depois disso, eu decidi que, definitivamente, andar debaixo de tempestades sempre traz algo de bom para a minha vida. 

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