10 de agosto de 2016

Enfrentando os estereótipos sobre a China



(Legenda: Um tipo de minhoca gorda muito comum na China dentro da cesta azul em um mercado, no meio de vegetais. Muitas estavam vivas e se mexendo no momento em que a foto foi tirada)

Antes de viajar eu decidi que não queria ler nada sobre a China; queria experimentar tudo por mim mesma e não ter nenhuma ideia preestabelecida para influenciar minhas opiniões. Essa, decerto, foi uma das melhores escolhas que fiz, pois se eu tivesse lido sobre certas coisas, ou as situações que vivi não teriam sido tão engraçadas ou eu poderia ter desistido de vir.

Escolhi morar um país bastante diferente do meu, literalmente do outro lado do mundo, com mais de cinco mil anos de história – o que é bastante em comparação com os 500 anos do Brasil –, de tradições e de cultura, portanto eu já viajei ciente de que minha vida aqui não seria nem um pouco parecida com o que era em Natal. Também viajei carregando em minha bagagem mental todos os estereótipos e preconceitos usuais sobre os chineses: são todos “iguais”, então preciso tomar cuidado para não me perder dos meus amigos; comem cachorro e insetos; não são nem um pouco higiênicos; não conseguem falar “pastel de frango”. Ao chegar aqui, percebi que existe sim um pouco de razão nesses pensamentos, mas, claro, eles são muito generalizados.

O primeiro estereótipo que preciso contestar é o de que asiáticos são todos iguais. Eles não são. Eu já encontrei meus amigos na rua, casualmente, e foi muito fácil de reconhecer seus rostos. É claro que existe algo em comum entre todos os asiáticos, mas não tão comum a ponto de não ser possível distinguir um do outro. Na verdade, em relação a esse aspecto eles são bastante diferentes, assim como qualquer brasileiro; a única coisa que os torna “iguais” para os nossos olhos acostumados com o diferente é que seus traços faciais possuem características bastante específicas, enquanto no Brasil, devido à mistura genética tão diversa, é difícil criar um padrão para poder sempre distinguir brasileiros mundo afora. Pelo menos em se tratando de aspectos físicos, mas em relação aos hábitos talvez seja um pouco mais fácil.

Sempre ouvi estrangeiros dizendo que os brasileiros são “limpinhos demais”, porque é comum escovarmos os dentes depois das refeições – mesmo não estando em casa, muita gente anda com a escova de dentes na bolsa –, fora a enorme quantidade de banhos que tomamos (porque um banho por dia pode ser considerado demais em certos países). Morar na China me fez perceber muitos outros hábitos higiênicos que carrego, porém sempre considerei normais, como lavar as mãos antes das refeições, não comer com as mãos (especialmente se elas estiverem sujas), não colocar a colher na boca e depois colocar de volta em um prato do qual outros estão se servindo, não tocar (com as mãos sujas) na comida alheia. São coisas do cotidiano, que aprendemos desde crianças a não fazer, mas que os chineses fazem, e com bastante frequência.

No começo, eu evitava comer coisas nas quais outras pessoas haviam tocado com as mãos, mas depois de um tempo percebi que isso só me faria morrer de fome, porque é muito difícil evitar esse acontecimento. Isso porque na China, ao pedir a comida, as pessoas não se servem como no Brasil – cada um coloca o tanto de comida que quer e temos talheres grandes e específicos para servir –, elas vão colocando a comida no prato aos poucos, à medida em que vão comendo, cada um utilizando seus próprios kuàizi (nome em mandarim dos “palitinhos”). Além disso, é comum ter pratos variados, como frutas e sopas, em uma mesma mesa, então não dá para simplesmente colocar tudo junto e comer. Em se tratando de coisas como milho, pão, frango e, às vezes, frutas, eles, muitas vezes, apenas os pegam da bandeja principal com as mãos, sem sequer usar um guardanapo para não se sujarem.

Guardanapos, inclusive, são bastante raros de se ver por aqui. O mais usual é as pessoas carregarem pacotes de lencinhos, caso queiram se limpar. Porém mais raros ainda são os garfos e as facas. Desde que estou aqui – o que faz pouco mais de um mês –, nunca vi nenhuma faca em um restaurante e só descobri que eles tinham facas na casa onde estou morando porque fui procurar uma panela para fazer brigadeiro e as encontrei empilhadas no fundo do armário. Não acho que tenham garfos “normais” na casa, apenas uns bem pequenos para comer frutas. Já as colheres são um pouco mais fáceis de encontrar, no entanto não são nem um pouco parecidas com as colheres brasileiras – as daqui são mais entortadas e fundas, próprias para tomar sopa.

Antes de viajar eu considerei trazer meu próprio conjunto de talheres, mas depois pensei: “Claro que isso é só um estereótipo bobo, não é possível que eles só comam com os palitinhos”. E eu não poderia estar mais enganada! Pelo menos aprendi a comer do jeito tradicional – levou um tempo, porém logo descobri o segredo: quando você está morrendo de fome, com certeza vai dar um jeito de fazer os palitos funcionarem, principalmente se comer com as mãos não é uma opção.

Também pensei que as comidas estranhas seriam apenas outro estereótipo, todavia, mais uma vez, estava enganada. Logo na primeira semana, quando estava em Pequim, fomos para uma feira no centro da cidade, na qual encontramos uma grande variedade de espetinhos de insetos, sendo os escorpiões os mais chamativos, pois muitos ainda estavam vivos. Depois, na minha primeira noite em Changchun, a família hospedeira nos levou (Kim, minha colega de quarto, eu e Ahmed, outro intercambista que havia passado o dia conosco) para jantar em um restaurante perto da casa, e lá serviram barata. Eu vi muita coisa estranha nesse país, aceitei passar por situações bastante incomuns, mas ver aquelas baratas conseguiu me tirar do sério em questão de segundos. Não esperava ser surpreendida por mais nada, em se tratando de comida. Até que semana passada fomos para uma vila para dar aulas e eu descobri que em frente à escola na qual estávamos ensinando havia dois restaurantes que serviam carne de cachorro.
                              

Então sim, eles têm todas essas comidas estranhas na China, mas não, não são coisas comuns que se comem todos os dias, em especial a carne de cachorro. Na verdade, desde que estou aqui, a única pessoa que conheci que provou carne de cachorro foi um dos intercambistas; nem mesmo meus amigos chineses considerariam essa opção.

Eles consideram, contudo, bastante normal o tipo de banheiro público que têm aqui. O que é compreensível, visto que é seu país natal e cresceram com isso. Eu, por outro lado, tive um choque cultural bem forte e uma crise de risos memorável quando abri a porta de uma cabine de banheiro pela primeira vez, ainda no aeroporto. Meu pai tinha me dito que era assim, mas eu preferi pensar que aquele era só mais um dos vários estereótipos. Quando eu abri aquela cabine, só consegui me lembrar das palavras dele e comecei a rir bastante: o “vaso sanitário” era um buraco no chão.

"Sanitário" do aeroporto
"Sanitário" do trem
A priori, talvez por ser brasileira, achei aquilo a coisa mais anti-higiênica do mundo, entretanto, depois que minhas amigas da Malásia me explicaram um pouco melhor, comecei a entender o porquê de os asiáticos, muitas vezes, preferirem utilizar esses buracos em vez de privadas como as que estamos acostumados no ocidente. Aparentemente, aqui, mesmo sendo um banheiro público, se o vaso sanitário permite que se sente, eles irão se sentar – enquanto no Brasil é comum se fazer o possível para não tocar no assento – e, seguindo essa lógica, ao se agachar no buraco você não entra em contato com nada, e depois pode apertar a descarga com o pé. Ainda acho muito estranho, mas já comecei a achar também mais higiênico, apesar de que, na maioria das vezes, as condições de limpeza desses banheiros são terríveis.

Depois de ter sido obrigada a usar o “buraco” do trem de Pequim para Changchun – foram dez horas de viagem –, eu lembrei da minha reação ao ver o do aeroporto e pensar que aquilo era anti-higiênico; meus conceitos de limpeza mudaram bastante desde que comecei a morar aqui. Na verdade, meu modo de pensar, em geral, muda todos os dias aqui, pois estou sempre aprendendo coisas novas. Não sofro tantos choques culturais porque tento enxergar o lado dos chineses o tempo todo, mas faço coisas que jamais faria se estivesse no Brasil, algumas por educação, outras simplesmente para experimentar coisas novas. Usar esses buracos vem sendo uma delas.


Encarar esses estereótipos me fez perceber que, mesmo eles possuindo suas bases lógicas, geralmente nós os fazemos soar pior do que são na realidade. Na maioria dos casos, o que é diferente da nossa cultura vai parecer um pouco errado a princípio, isso é compreensível. Até chegar o momento em que ver com tanta frequência as pessoas agirem com naturalidade frente aos pratos de barata faz surgir uma sensação de que talvez o errado seja reagir negativamente; não usar os buracos no chão para fazer as necessidades começa a parecer estranho, vasos sanitários talvez sejam menos higiênicos mesmo. O hábito constrói a sensação de um novo tipo de “normal” e, aos poucos, os preconceitos são esquecidos e fica cada vez mais claro que somos todos simplesmente humanos.

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