(Legenda: Um tipo de minhoca gorda
muito comum na China dentro da cesta azul em um mercado, no meio de vegetais.
Muitas estavam vivas e se mexendo no momento em que a foto foi tirada)
Antes de viajar eu decidi que não queria ler nada
sobre a China; queria experimentar tudo por mim mesma e não ter nenhuma ideia
preestabelecida para influenciar minhas opiniões. Essa, decerto, foi uma das
melhores escolhas que fiz, pois se eu tivesse lido sobre certas coisas, ou as
situações que vivi não teriam sido tão engraçadas ou eu poderia ter desistido
de vir.
Escolhi morar um país bastante diferente do meu,
literalmente do outro lado do mundo, com mais de cinco mil anos de história – o
que é bastante em comparação com os 500 anos do Brasil –, de tradições e de
cultura, portanto eu já viajei ciente de que minha vida aqui não seria nem um
pouco parecida com o que era em Natal. Também viajei carregando em minha
bagagem mental todos os estereótipos e preconceitos usuais sobre os chineses:
são todos “iguais”, então preciso tomar cuidado para não me perder dos meus
amigos; comem cachorro e insetos; não são nem um pouco higiênicos; não
conseguem falar “pastel de frango”. Ao chegar aqui, percebi que existe sim um
pouco de razão nesses pensamentos, mas, claro, eles são muito generalizados.
O primeiro estereótipo que preciso contestar é o de
que asiáticos são todos iguais. Eles não são. Eu já encontrei meus amigos na
rua, casualmente, e foi muito fácil de reconhecer seus rostos. É claro que
existe algo em comum entre todos os asiáticos, mas não tão comum a ponto de não
ser possível distinguir um do outro. Na verdade, em relação a esse aspecto eles
são bastante diferentes, assim como qualquer brasileiro; a única coisa que os
torna “iguais” para os nossos olhos acostumados com o diferente é que seus
traços faciais possuem características bastante específicas, enquanto no
Brasil, devido à mistura genética tão diversa, é difícil criar um padrão para
poder sempre distinguir brasileiros mundo afora. Pelo menos em se tratando de
aspectos físicos, mas em relação aos hábitos talvez seja um pouco mais fácil.
Sempre ouvi estrangeiros dizendo que os brasileiros
são “limpinhos demais”, porque é comum escovarmos os dentes depois das
refeições – mesmo não estando em casa, muita gente anda com a escova de dentes
na bolsa –, fora a enorme quantidade de banhos que tomamos (porque um banho por
dia pode ser considerado demais em certos países). Morar na China me fez
perceber muitos outros hábitos higiênicos que carrego, porém sempre considerei
normais, como lavar as mãos antes das refeições, não comer com as mãos
(especialmente se elas estiverem sujas), não colocar a colher na boca e depois
colocar de volta em um prato do qual outros estão se servindo, não tocar (com
as mãos sujas) na comida alheia. São coisas do cotidiano, que aprendemos desde
crianças a não fazer, mas que os chineses fazem, e com bastante frequência.
No começo, eu evitava comer coisas nas quais outras
pessoas haviam tocado com as mãos, mas depois de um tempo percebi que isso só
me faria morrer de fome, porque é muito difícil evitar esse acontecimento. Isso
porque na China, ao pedir a comida, as pessoas não se servem como no Brasil –
cada um coloca o tanto de comida que quer e temos talheres grandes e
específicos para servir –, elas vão colocando a comida no prato aos poucos, à
medida em que vão comendo, cada um utilizando seus próprios kuàizi (nome em mandarim dos “palitinhos”). Além disso, é comum ter pratos variados, como
frutas e sopas, em uma mesma mesa, então não dá para simplesmente colocar tudo
junto e comer. Em se tratando de coisas como milho, pão, frango e, às vezes,
frutas, eles, muitas vezes, apenas os pegam da bandeja principal com as mãos,
sem sequer usar um guardanapo para não se sujarem.
Guardanapos, inclusive, são bastante raros de se ver
por aqui. O mais usual é as pessoas carregarem pacotes de lencinhos, caso
queiram se limpar. Porém mais raros ainda são os garfos e as facas. Desde que
estou aqui – o que faz pouco mais de um mês –, nunca vi nenhuma faca em um
restaurante e só descobri que eles tinham facas na casa onde estou morando
porque fui procurar uma panela para fazer brigadeiro e as encontrei empilhadas
no fundo do armário. Não acho que tenham garfos “normais” na casa, apenas uns
bem pequenos para comer frutas. Já as colheres são um pouco mais fáceis de
encontrar, no entanto não são nem um pouco parecidas com as colheres
brasileiras – as daqui são mais entortadas e fundas, próprias para tomar sopa.
Antes de viajar eu considerei trazer meu próprio
conjunto de talheres, mas depois pensei: “Claro que isso é só um estereótipo
bobo, não é possível que eles só comam com os palitinhos”. E eu não poderia
estar mais enganada! Pelo menos aprendi a comer do jeito tradicional – levou um
tempo, porém logo descobri o segredo: quando você está morrendo de fome, com
certeza vai dar um jeito de fazer os palitos funcionarem, principalmente se
comer com as mãos não é uma opção.
Também pensei que as comidas estranhas seriam apenas
outro estereótipo, todavia, mais uma vez, estava enganada. Logo na primeira
semana, quando estava em Pequim, fomos para uma feira no centro da cidade, na
qual encontramos uma grande variedade de espetinhos de insetos, sendo os
escorpiões os mais chamativos, pois muitos ainda estavam vivos. Depois, na
minha primeira noite em Changchun, a família hospedeira nos levou (Kim, minha
colega de quarto, eu e Ahmed, outro intercambista que havia passado o dia
conosco) para jantar em um restaurante perto da casa, e lá serviram barata. Eu
vi muita coisa estranha nesse país, aceitei passar por situações bastante
incomuns, mas ver aquelas baratas conseguiu me tirar do sério em questão de
segundos. Não esperava ser surpreendida por mais nada, em se tratando de
comida. Até que semana passada fomos para uma vila para dar aulas e eu descobri
que em frente à escola na qual estávamos ensinando havia dois restaurantes que
serviam carne de cachorro.
Então sim, eles têm todas essas comidas estranhas na
China, mas não, não são coisas comuns que se comem todos os dias, em especial a
carne de cachorro. Na verdade, desde que estou aqui, a única pessoa que conheci
que provou carne de cachorro foi um dos intercambistas; nem mesmo meus amigos
chineses considerariam essa opção.
Eles consideram, contudo, bastante normal o tipo de
banheiro público que têm aqui. O que é compreensível, visto que é seu país
natal e cresceram com isso. Eu, por outro lado, tive um choque cultural bem
forte e uma crise de risos memorável quando abri a porta de uma cabine de
banheiro pela primeira vez, ainda no aeroporto. Meu pai tinha me dito que era assim,
mas eu preferi pensar que aquele era só mais um dos vários estereótipos. Quando
eu abri aquela cabine, só consegui me lembrar das palavras dele e comecei a rir
bastante: o “vaso sanitário” era um buraco no chão.
"Sanitário" do aeroporto |
"Sanitário" do trem |
A priori, talvez por ser brasileira, achei aquilo a
coisa mais anti-higiênica do mundo, entretanto, depois que minhas amigas da
Malásia me explicaram um pouco melhor, comecei a entender o porquê de os
asiáticos, muitas vezes, preferirem utilizar esses buracos em vez de privadas
como as que estamos acostumados no ocidente. Aparentemente, aqui, mesmo sendo
um banheiro público, se o vaso sanitário permite que se sente, eles irão se
sentar – enquanto no Brasil é comum se fazer o possível para não tocar no assento
– e, seguindo essa lógica, ao se agachar no buraco você não entra em contato
com nada, e depois pode apertar a descarga com o pé. Ainda acho muito estranho,
mas já comecei a achar também mais higiênico, apesar de que, na maioria das
vezes, as condições de limpeza desses banheiros são terríveis.
Depois de ter sido obrigada a usar o “buraco” do trem
de Pequim para Changchun – foram dez horas de viagem –, eu lembrei da minha
reação ao ver o do aeroporto e pensar que aquilo era anti-higiênico; meus
conceitos de limpeza mudaram bastante desde que comecei a morar aqui. Na
verdade, meu modo de pensar, em geral, muda todos os dias aqui, pois estou
sempre aprendendo coisas novas. Não sofro tantos choques culturais porque tento
enxergar o lado dos chineses o tempo todo, mas faço coisas que jamais faria se
estivesse no Brasil, algumas por educação, outras simplesmente para
experimentar coisas novas. Usar esses buracos vem sendo uma delas.
Encarar esses estereótipos me fez perceber que, mesmo
eles possuindo suas bases lógicas, geralmente nós os fazemos soar pior do que
são na realidade. Na maioria dos casos, o que é diferente da nossa cultura vai
parecer um pouco errado a princípio, isso é compreensível. Até chegar o momento
em que ver com tanta frequência as pessoas agirem com naturalidade frente aos
pratos de barata faz surgir uma sensação de que talvez o errado seja reagir
negativamente; não usar os buracos no chão para fazer as necessidades começa a
parecer estranho, vasos sanitários talvez sejam menos higiênicos mesmo. O
hábito constrói a sensação de um novo tipo de “normal” e, aos poucos, os
preconceitos são esquecidos e fica cada vez mais claro que somos todos
simplesmente humanos.
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