Medo: foi o sentimento que me dominou durante todas
as transições de aeroporto e de avião. Não porque tenho medo de voar, isso eu
consigo relevar; também não porque eu tenho medo de ficar sozinha em um país
estranho – minha parada seria no Estados Unidos e, na pior das hipóteses, ao
menos falo inglês. Era um medo inexplicável, o medo do desconhecido. Como no
mito da caverna de Platão, meu interior estava amarrado à uma pedra, assistindo
um espetáculo diário de sombras: minha vida antiga, confortável, simples; então
algo dentro de mim me fez decidir viajar para o outro lado do mundo, como se
esse algo tivesse se libertado das correntes e estivesse, naquele momento,
tentando mostrar ao resto que a vida não era só aquilo.
É difícil deixar para traz tudo o que se ama para se
jogar no desconhecido, sem uma certeza do que se procura, sem uma garantia de
que algo será encontrado. Durante todo o caminho eu não conseguia parar de
pensar: “Tudo bem, eu posso voltar quando eu quiser... Posso voltar quando eu
quiser... Posso voltar quando eu quiser...”. Não conseguia parar de questionar
minha escolha, de tentar entender a razão que me fizera partir. Mas ao mesmo
tempo, sentia-me presa em um limbo emocional, no qual nada realmente importava,
no qual nada era real, e a única certeza era que não existia mais a
possibilidade de voltar atrás. E eu sabia que isso só iria passar no momento em
que as coisas começassem a acontecer de verdade.
Apesar do medo, o limbo emocional me deixou tão
letárgica que fiquei surpresa de não ter vivido nenhum momento de emoções
negativas intensas. Esperei, sinceramente, chegar uma situação na qual eu
quebraria, quando finalmente entendesse onde estou e não tem mais volta, então
ficaria triste e choraria. O que aconteceu foi o contrário: não poderia estar
mais feliz de estar aqui e a única coisa que me faz sentir algo parecido com
tristeza é a possibilidade de voltar.
Como eu disse no texto anterior, o que me fez,
inicialmente, ter a ideia de viajar, foi uma situação que me entristeceu e me
fez querer fugir. Pouco antes de vir para a China, porém, eu percebi que minha
felicidade não estava no controle de ninguém além do meu próprio. Pode até
parecer frase de livro de auto ajuda, mas é a pura verdade: não importa o quão
triste você está, a única pessoa que pode mudar isso é você mesmo. Se eu não
tivesse percebido isso antes de viajar, provavelmente estaria passando pela
mesma tristeza aqui, pois não importa se você muda de país, seus sentimentos
continuam lá dentro, no mesmo lugar.
Sem a motivação inicial, parei de criar expectativas
– o que pode parecer difícil de acreditar –, viajei sem esperar absolutamente
nada. Claro que tentei pensar de modo positivo, no entanto não fiquei fazendo
os habituais planos na minha mente, apenas me deixei vir, e agora todos os dias
me deixo viver. É uma pena ter demorado tanto tempo para perceber que não é
porque estou na China que todos os dias vivo experiências novas – claro que
algumas são devido à falta de conhecimento da língua ou da cultura –, isso é
possível se fazer em qualquer lugar do mundo, basta se deixar experimentar,
tentar, não planejar tudo, deixar-se levar um pouco. As coisas não vão ser
sempre como esperamos, então o melhor a se fazer é procurar o lado bom das
coisas e viver do jeito mais feliz possível.
As minhas piores experiências aqui foram responsáveis
pelas melhores memórias até agora. Isso porque em vez de olhar pelo lado
negativo, eu me deixei aproveitar o momento, rir dos infortúnios da vida. Como
em Pequim, no nosso último dia lá.
Antes de vir morar em Changchun, eu passei uma semana
em Pequim com os outros intercambistas e alguns voluntários locais para uma
conferência sobre a AIESEC, os objetivos dos nossos projetos e mais alguns
eventos para conhecer as outras pessoas que vieram para a China e ficariam em
outras cidades. Passeamos um pouco pela cidade, mas a maior parte do tempo
ficamos no hotel da conferência – o que não deixou de ser algo bom.
No dia anterior ao que deveríamos vir para Changchun
de trem, pouco antes de deixarmos a conferência, eu encontrei uma nota de 50
yuan no chão. Como era um lugar cheio de gente, se eu levantasse a nota e
perguntasse quem perdeu, a probabilidade de alguém mentir era bem grande, sendo
assim minha amiga disse para eu ficar com a nota, afinal, aquele era um sinal
de sorte. Bastante feliz com o dinheiro extra, saí do hotel com meus amigos e
pegamos o ônibus para um apartamento de aluguel no qual passaríamos a noite
para, no dia seguinte, pela tarde, pegar o trem.
Ao chegar lá, ainda estava feliz por causa da
conferência, então comecei a cantar alto e em português, e minha coordenadora,
Celine, pediu-me para fazer silêncio. Estranhei, mas obedeci. Quando entramos
no apartamento ela me explicou que naquele lugar eles não aceitavam
estrangeiros e por isso ninguém podia saber que eu estava lá, caso contrário
corríamos risco de ir para a cadeia. Para piorar a situação, havia o agravante
de que, na China, quando você é estrangeiro e chega em uma cidade, precisa se
registrar na polícia, mas como só ficaríamos poucos dias, não fomos nos
registrar, então isso dificultaria nosso caso se realmente acabássemos sendo
levados para uma delegacia.
Como ninguém podia me ver, precisei ficar no quarto.
O tempo todo Celine ficava se desculpando, dizendo que não queria que tivesse
sido assim, mas era muito difícil encontrar locais para alugar naquela época do
ano, em especial locais baratos. Eu insistia que estava tudo bem, afinal, seria
só uma noite, no máximo um dia.
Chegou a hora de jantar e me perguntaram o que eu
gostaria de comer, falei que queria jiaozi – algo que só consigo descrever como
uma espécie de mini pastel cozido, recheado com carne ou vegetais – e esperei
que fossem comer e só depois trazer o meu. Para minha surpresa, todos voltaram
com seus pratos e comemos juntos no quarto. Aquele momento foi bastante
especial para mim, pois foi de uma consideração muito grande da parte deles não
me deixar comer sozinha.
Estávamos conversando quando eu contei para eles
sobre o dinheiro, e me disseram que na China, se você encontra dinheiro no
chão, eles acreditam que você deve gastar tudo de uma vez, caso contrário vai
atrair má sorte. Eu não acredito nessas coisas, prefiro pensar que nós
construímos nossa própria sorte, todavia a série de eventos a seguir me fez
duvidar um pouco de mim mesma, e o fato de todos ficarem me culpando – de
brincadeira, claro – por todas as coisas ruins que nos aconteciam não ajudou
muito. E ainda tinha o fato de que, no fim das contas, eu estava em um lugar
proibido para estrangeiros correndo risco de ser presa, e isso não é exatamente
um sinal de boa sorte.
No dia seguinte a cidade acordou sob uma das piores
tempestades que eu já vi, no entanto, alguns intercambistas insistiram que
queriam visitar a Grande Muralha da China. As voluntárias locais explicaram que
provavelmente estaria fechada, pois a chuva estava muito forte mesmo, todavia
insistiram em tentar. Eu estava sofrendo muito com o fuso horário e não estava
com vontade de ir para aquele passeio molhado – mais o fato de que eu tinha o
pressentimento de que aquilo não iria correr bem. Então voltei para o quarto
com a coordenadora e outra voluntária chinesa, Kate. Mal deitamos para dormir,
ouvimos batidas fortes na porta e um chinês bem estressado entrou no quarto.
Não entendi o que se passou, mas fomos expulsas.
De repente estávamos debaixo de um barraco, a chuva
torrencial e o vento frio cortando nossa pele, e sem podermos ir embora, pois
precisávamos esperar os outros voltarem. Isso, felizmente, não demorou muito –
só umas duas horas -, porque – como eu havia imaginado – eles não conseguiram
sequer pegar o ônibus para a Muralha – ou seja, se eles tivessem ido, a espera
teria sido ainda pior.
Enquanto esperávamos, Celine tentou reservar um hotel
para ficarmos descansando até o horário do trem, no entanto não foi possível,
então ela chamou um táxi. Nesse meio tempo os outros voltaram, subiram para
pegar as malas e ficamos juntos esperando o táxi, até que Celine recebeu uma
ligação: o motorista bateu o carro no meio do caminho.
Como na maior parte do tempo os voluntários
conversavam em mandarim entre si, eu não conseguia entender direito o que
estava acontecendo. Só sabia que tinham chamado outro táxi e que, em poucas
horas, deveríamos estar em outro lugar – não sabia onde, porém. O táxi chegou,
no entanto não havia espaço para todos e a prioridade era levar as malas em
segurança, por isso três pessoas foram, para poder carregar as coisas quando
chegassem no local de destino – ainda uma incógnita para mim. Assim que todas
as malas estavam no carro, o resto de nós – cerca de nove pessoas – precisou
andar pela chuva até a estação de metrô.
Eu costumava detestar os dias de chuva em Natal, pois
as ruas ficam alagadas e é difícil de dirigir, contudo o que passei naquele dia
me fez mudar meus parâmetros do que é uma rua alagada. Atravessamos várias ruas
com a água acima dos tornozelos e, em determinado ponto, parecia que estávamos
em uma espécie de praia urbana, pois além de alta, os carros faziam a água se
mover e formar ondas. Além do óbvio desconforto de estar andando debaixo de uma
chuva tão pesada, havia o agravante de, no meu caso, estar carregando uma
mochila de cinco quilos nas costas e outra do mesmo peso na frente, e dividindo
um guarda-chuva pequeno com minha amiga.
Chegamos na estação de metrô e ela também estava
completamente alagada. Passamos um bom tempo transitando de um metrô para o
outro, até chegar na estação de destino. Então precisamos passar pela
tempestade mais uma vez, mesmo desconforto. E, finalmente, estávamos no nosso
destino: um shopping center.
Naquele ponto, eu estava contando com um banho, e por
isso fiquei um pouco decepcionada, mas por outro lado estava tão cansada que só
sentar foi suficiente para me fazer sentir melhor. Fomos para o McDonald’s e eu
pedi um café com refil – você paga 7 yuan, algo em torno de R$3,50, e pode
encher de novo quantas vezes quiser –, tomei uns três e fui dormir utilizando
dois bancos e as pernas da Kate.
Quando acordei já estava perto da hora de partir,
pegamos nossas malas e voltamos para a chuva. Atravessar as ruas alagadas tinha
sido bastante desconfortável, mas pelo menos não precisamos carregar malas.
Fora isso, agora precisaríamos atravessar uma passarela cheia de escadas, e
cada mala pesava no mínimo 15kg – a minha, de 27kg, meu amigo Min Yao fez o favor
de carregar para mim, e eu carreguei a mala da Kate. Nesse ponto, não fazia
sentido usar guarda-chuva, porque todos precisavam das mãos para segurar as
coisas, então atravessamos literalmente debaixo da chuva, os degraus
escorregadios nos fazendo tropeçar constantemente, o peso das malas e mochilas
parecendo aumentar a cada segundo, as roupas encharcadas.
Finalmente chegamos na estação de trem, e a calçada
da frente estava tão molhada que a água chegava, no mínimo, aos tornozelos.
Deixamos as malas em um local seco e fomos pegar as passagens de trem – pois
apesar de já terem sido compradas, era preciso fazer a retirada no local.
Chegando lá, as filas estavam enormes, então nos dividimos em dois grupos. A
fila em que eu fiquei foi a mais lenta, e enquanto esperávamos todos começaram
a brincar e dizer que era culpa do dinheiro amaldiçoado que eu pegara. As
brincadeiras pioraram quando chegamos na estação e descobrimos que o trem
atrasaria por causa da chuva – que também era minha culpa, aparentemente.
E agora chega a parte mais importante desse episódio:
durante todos os momentos, por mais difíceis e desconfortáveis que pudessem
parecer, não houve nenhuma reclamação da minha parte, nem um momento no qual eu
não estivesse com um sorriso no rosto, fazendo brincadeiras com o pessoal e
tentando deixar aquele momento aparentemente tão ruim o melhor possível. Para a
minha sorte, todos se sentiam da mesma maneira, ninguém queria ver aquilo como
algo negativo, então passamos o tempo todo brincando, cantando, rindo e, quando
chegamos no trem e pudemos descansar, todos concordaram que aquele foi um dos
melhores dias da viagem, e entraria para uma das melhores memórias de nossas
vidas.
Eu poderia ter escolhido acreditar no azar, ou ver
aquilo como algo ruim, mas desde aquele dia, a coisa que eu mais quero é
encontrar outra nota de 50 yuan no chão e ter mais um pouco daquele azar, que
me fez ficar mais próxima das pessoas que trabalham comigo e me fez viver
momentos tão únicos e felizes. Ao escolher ver aquele azar e todas as coisas
ruins que aconteceram como positivas, eu escolhi não me deixar sofrer. Muitas
vezes pensamos que isso não é uma escolha – talvez não seja quando se trata de
sentimentos mais profundos – mas em se tratando de pequenas situações, é sim.
Depois daquela “aventura”, todos ficaram com as
bagagens encharcadas, eu quase perdi dois livros, pois eles ficaram molhados
demais (felizmente eu consegui secar, porém ficaram bem estragados), alguns
adoeceram, uma das meninas precisou jogar os sapatos fora de tão estragados que
ficaram da chuva e, ao chegar em Changchun, todos precisavam lavar praticamente
todas as roupas, porque estava tudo sujo com a água da chuva, lama e umidade. E
mesmo com essas consequências, eu não me importaria de passar por tudo de novo,
e tenho certeza que nenhum deles se importaria também.
Com esse texto eu só queria expressar que: o
importante não é onde você está, é um pouco com quem você está e um pouco como
você está consigo mesmo. Sua felicidade só vai vir se você deixar que ela
venha; não adianta ficar reclamando de tudo, porque assim você não dá
oportunidade para que nada de novo aconteça na sua vida. Se eu não estivesse na
China agora, estaria vivendo coisas novas todos os dias, porque essa é a vida,
nenhum dia é igual, e eu queria muito que mais pessoas conseguissem enxergar
isso. Viajar não faz seus problemas desaparecerem, fugir não é a solução.
O texto ficou maior do que eu imaginava, pois
precisei dar algumas explicações introdutórias; provavelmente os próximos serão
menores e, espero, bastante interessantes. Afinal, ainda preciso falar sobre as
diferenças culturais e todas as coisas estranhas que eu encontrei por aqui.
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