25 de julho de 2016

A viagem que muda minha vida


Medo: foi o sentimento que me dominou durante todas as transições de aeroporto e de avião. Não porque tenho medo de voar, isso eu consigo relevar; também não porque eu tenho medo de ficar sozinha em um país estranho – minha parada seria no Estados Unidos e, na pior das hipóteses, ao menos falo inglês. Era um medo inexplicável, o medo do desconhecido. Como no mito da caverna de Platão, meu interior estava amarrado à uma pedra, assistindo um espetáculo diário de sombras: minha vida antiga, confortável, simples; então algo dentro de mim me fez decidir viajar para o outro lado do mundo, como se esse algo tivesse se libertado das correntes e estivesse, naquele momento, tentando mostrar ao resto que a vida não era só aquilo.

É difícil deixar para traz tudo o que se ama para se jogar no desconhecido, sem uma certeza do que se procura, sem uma garantia de que algo será encontrado. Durante todo o caminho eu não conseguia parar de pensar: “Tudo bem, eu posso voltar quando eu quiser... Posso voltar quando eu quiser... Posso voltar quando eu quiser...”. Não conseguia parar de questionar minha escolha, de tentar entender a razão que me fizera partir. Mas ao mesmo tempo, sentia-me presa em um limbo emocional, no qual nada realmente importava, no qual nada era real, e a única certeza era que não existia mais a possibilidade de voltar atrás. E eu sabia que isso só iria passar no momento em que as coisas começassem a acontecer de verdade.

Apesar do medo, o limbo emocional me deixou tão letárgica que fiquei surpresa de não ter vivido nenhum momento de emoções negativas intensas. Esperei, sinceramente, chegar uma situação na qual eu quebraria, quando finalmente entendesse onde estou e não tem mais volta, então ficaria triste e choraria. O que aconteceu foi o contrário: não poderia estar mais feliz de estar aqui e a única coisa que me faz sentir algo parecido com tristeza é a possibilidade de voltar.

Como eu disse no texto anterior, o que me fez, inicialmente, ter a ideia de viajar, foi uma situação que me entristeceu e me fez querer fugir. Pouco antes de vir para a China, porém, eu percebi que minha felicidade não estava no controle de ninguém além do meu próprio. Pode até parecer frase de livro de auto ajuda, mas é a pura verdade: não importa o quão triste você está, a única pessoa que pode mudar isso é você mesmo. Se eu não tivesse percebido isso antes de viajar, provavelmente estaria passando pela mesma tristeza aqui, pois não importa se você muda de país, seus sentimentos continuam lá dentro, no mesmo lugar.

Sem a motivação inicial, parei de criar expectativas – o que pode parecer difícil de acreditar –, viajei sem esperar absolutamente nada. Claro que tentei pensar de modo positivo, no entanto não fiquei fazendo os habituais planos na minha mente, apenas me deixei vir, e agora todos os dias me deixo viver. É uma pena ter demorado tanto tempo para perceber que não é porque estou na China que todos os dias vivo experiências novas – claro que algumas são devido à falta de conhecimento da língua ou da cultura –, isso é possível se fazer em qualquer lugar do mundo, basta se deixar experimentar, tentar, não planejar tudo, deixar-se levar um pouco. As coisas não vão ser sempre como esperamos, então o melhor a se fazer é procurar o lado bom das coisas e viver do jeito mais feliz possível.

As minhas piores experiências aqui foram responsáveis pelas melhores memórias até agora. Isso porque em vez de olhar pelo lado negativo, eu me deixei aproveitar o momento, rir dos infortúnios da vida. Como em Pequim, no nosso último dia lá.

Antes de vir morar em Changchun, eu passei uma semana em Pequim com os outros intercambistas e alguns voluntários locais para uma conferência sobre a AIESEC, os objetivos dos nossos projetos e mais alguns eventos para conhecer as outras pessoas que vieram para a China e ficariam em outras cidades. Passeamos um pouco pela cidade, mas a maior parte do tempo ficamos no hotel da conferência – o que não deixou de ser algo bom.

No dia anterior ao que deveríamos vir para Changchun de trem, pouco antes de deixarmos a conferência, eu encontrei uma nota de 50 yuan no chão. Como era um lugar cheio de gente, se eu levantasse a nota e perguntasse quem perdeu, a probabilidade de alguém mentir era bem grande, sendo assim minha amiga disse para eu ficar com a nota, afinal, aquele era um sinal de sorte. Bastante feliz com o dinheiro extra, saí do hotel com meus amigos e pegamos o ônibus para um apartamento de aluguel no qual passaríamos a noite para, no dia seguinte, pela tarde, pegar o trem.

Ao chegar lá, ainda estava feliz por causa da conferência, então comecei a cantar alto e em português, e minha coordenadora, Celine, pediu-me para fazer silêncio. Estranhei, mas obedeci. Quando entramos no apartamento ela me explicou que naquele lugar eles não aceitavam estrangeiros e por isso ninguém podia saber que eu estava lá, caso contrário corríamos risco de ir para a cadeia. Para piorar a situação, havia o agravante de que, na China, quando você é estrangeiro e chega em uma cidade, precisa se registrar na polícia, mas como só ficaríamos poucos dias, não fomos nos registrar, então isso dificultaria nosso caso se realmente acabássemos sendo levados para uma delegacia.

Como ninguém podia me ver, precisei ficar no quarto. O tempo todo Celine ficava se desculpando, dizendo que não queria que tivesse sido assim, mas era muito difícil encontrar locais para alugar naquela época do ano, em especial locais baratos. Eu insistia que estava tudo bem, afinal, seria só uma noite, no máximo um dia.

Chegou a hora de jantar e me perguntaram o que eu gostaria de comer, falei que queria jiaozi – algo que só consigo descrever como uma espécie de mini pastel cozido, recheado com carne ou vegetais – e esperei que fossem comer e só depois trazer o meu. Para minha surpresa, todos voltaram com seus pratos e comemos juntos no quarto. Aquele momento foi bastante especial para mim, pois foi de uma consideração muito grande da parte deles não me deixar comer sozinha.

Estávamos conversando quando eu contei para eles sobre o dinheiro, e me disseram que na China, se você encontra dinheiro no chão, eles acreditam que você deve gastar tudo de uma vez, caso contrário vai atrair má sorte. Eu não acredito nessas coisas, prefiro pensar que nós construímos nossa própria sorte, todavia a série de eventos a seguir me fez duvidar um pouco de mim mesma, e o fato de todos ficarem me culpando – de brincadeira, claro – por todas as coisas ruins que nos aconteciam não ajudou muito. E ainda tinha o fato de que, no fim das contas, eu estava em um lugar proibido para estrangeiros correndo risco de ser presa, e isso não é exatamente um sinal de boa sorte.

No dia seguinte a cidade acordou sob uma das piores tempestades que eu já vi, no entanto, alguns intercambistas insistiram que queriam visitar a Grande Muralha da China. As voluntárias locais explicaram que provavelmente estaria fechada, pois a chuva estava muito forte mesmo, todavia insistiram em tentar. Eu estava sofrendo muito com o fuso horário e não estava com vontade de ir para aquele passeio molhado – mais o fato de que eu tinha o pressentimento de que aquilo não iria correr bem. Então voltei para o quarto com a coordenadora e outra voluntária chinesa, Kate. Mal deitamos para dormir, ouvimos batidas fortes na porta e um chinês bem estressado entrou no quarto. Não entendi o que se passou, mas fomos expulsas.

De repente estávamos debaixo de um barraco, a chuva torrencial e o vento frio cortando nossa pele, e sem podermos ir embora, pois precisávamos esperar os outros voltarem. Isso, felizmente, não demorou muito – só umas duas horas -, porque – como eu havia imaginado – eles não conseguiram sequer pegar o ônibus para a Muralha – ou seja, se eles tivessem ido, a espera teria sido ainda pior.

Enquanto esperávamos, Celine tentou reservar um hotel para ficarmos descansando até o horário do trem, no entanto não foi possível, então ela chamou um táxi. Nesse meio tempo os outros voltaram, subiram para pegar as malas e ficamos juntos esperando o táxi, até que Celine recebeu uma ligação: o motorista bateu o carro no meio do caminho.

Como na maior parte do tempo os voluntários conversavam em mandarim entre si, eu não conseguia entender direito o que estava acontecendo. Só sabia que tinham chamado outro táxi e que, em poucas horas, deveríamos estar em outro lugar – não sabia onde, porém. O táxi chegou, no entanto não havia espaço para todos e a prioridade era levar as malas em segurança, por isso três pessoas foram, para poder carregar as coisas quando chegassem no local de destino – ainda uma incógnita para mim. Assim que todas as malas estavam no carro, o resto de nós – cerca de nove pessoas – precisou andar pela chuva até a estação de metrô.

Eu costumava detestar os dias de chuva em Natal, pois as ruas ficam alagadas e é difícil de dirigir, contudo o que passei naquele dia me fez mudar meus parâmetros do que é uma rua alagada. Atravessamos várias ruas com a água acima dos tornozelos e, em determinado ponto, parecia que estávamos em uma espécie de praia urbana, pois além de alta, os carros faziam a água se mover e formar ondas. Além do óbvio desconforto de estar andando debaixo de uma chuva tão pesada, havia o agravante de, no meu caso, estar carregando uma mochila de cinco quilos nas costas e outra do mesmo peso na frente, e dividindo um guarda-chuva pequeno com minha amiga.

Chegamos na estação de metrô e ela também estava completamente alagada. Passamos um bom tempo transitando de um metrô para o outro, até chegar na estação de destino. Então precisamos passar pela tempestade mais uma vez, mesmo desconforto. E, finalmente, estávamos no nosso destino: um shopping center.

Naquele ponto, eu estava contando com um banho, e por isso fiquei um pouco decepcionada, mas por outro lado estava tão cansada que só sentar foi suficiente para me fazer sentir melhor. Fomos para o McDonald’s e eu pedi um café com refil – você paga 7 yuan, algo em torno de R$3,50, e pode encher de novo quantas vezes quiser –, tomei uns três e fui dormir utilizando dois bancos e as pernas da Kate.

Quando acordei já estava perto da hora de partir, pegamos nossas malas e voltamos para a chuva. Atravessar as ruas alagadas tinha sido bastante desconfortável, mas pelo menos não precisamos carregar malas. Fora isso, agora precisaríamos atravessar uma passarela cheia de escadas, e cada mala pesava no mínimo 15kg – a minha, de 27kg, meu amigo Min Yao fez o favor de carregar para mim, e eu carreguei a mala da Kate. Nesse ponto, não fazia sentido usar guarda-chuva, porque todos precisavam das mãos para segurar as coisas, então atravessamos literalmente debaixo da chuva, os degraus escorregadios nos fazendo tropeçar constantemente, o peso das malas e mochilas parecendo aumentar a cada segundo, as roupas encharcadas.

Finalmente chegamos na estação de trem, e a calçada da frente estava tão molhada que a água chegava, no mínimo, aos tornozelos. Deixamos as malas em um local seco e fomos pegar as passagens de trem – pois apesar de já terem sido compradas, era preciso fazer a retirada no local. Chegando lá, as filas estavam enormes, então nos dividimos em dois grupos. A fila em que eu fiquei foi a mais lenta, e enquanto esperávamos todos começaram a brincar e dizer que era culpa do dinheiro amaldiçoado que eu pegara. As brincadeiras pioraram quando chegamos na estação e descobrimos que o trem atrasaria por causa da chuva – que também era minha culpa, aparentemente.

E agora chega a parte mais importante desse episódio: durante todos os momentos, por mais difíceis e desconfortáveis que pudessem parecer, não houve nenhuma reclamação da minha parte, nem um momento no qual eu não estivesse com um sorriso no rosto, fazendo brincadeiras com o pessoal e tentando deixar aquele momento aparentemente tão ruim o melhor possível. Para a minha sorte, todos se sentiam da mesma maneira, ninguém queria ver aquilo como algo negativo, então passamos o tempo todo brincando, cantando, rindo e, quando chegamos no trem e pudemos descansar, todos concordaram que aquele foi um dos melhores dias da viagem, e entraria para uma das melhores memórias de nossas vidas.

Eu poderia ter escolhido acreditar no azar, ou ver aquilo como algo ruim, mas desde aquele dia, a coisa que eu mais quero é encontrar outra nota de 50 yuan no chão e ter mais um pouco daquele azar, que me fez ficar mais próxima das pessoas que trabalham comigo e me fez viver momentos tão únicos e felizes. Ao escolher ver aquele azar e todas as coisas ruins que aconteceram como positivas, eu escolhi não me deixar sofrer. Muitas vezes pensamos que isso não é uma escolha – talvez não seja quando se trata de sentimentos mais profundos – mas em se tratando de pequenas situações, é sim.

Depois daquela “aventura”, todos ficaram com as bagagens encharcadas, eu quase perdi dois livros, pois eles ficaram molhados demais (felizmente eu consegui secar, porém ficaram bem estragados), alguns adoeceram, uma das meninas precisou jogar os sapatos fora de tão estragados que ficaram da chuva e, ao chegar em Changchun, todos precisavam lavar praticamente todas as roupas, porque estava tudo sujo com a água da chuva, lama e umidade. E mesmo com essas consequências, eu não me importaria de passar por tudo de novo, e tenho certeza que nenhum deles se importaria também.

Com esse texto eu só queria expressar que: o importante não é onde você está, é um pouco com quem você está e um pouco como você está consigo mesmo. Sua felicidade só vai vir se você deixar que ela venha; não adianta ficar reclamando de tudo, porque assim você não dá oportunidade para que nada de novo aconteça na sua vida. Se eu não estivesse na China agora, estaria vivendo coisas novas todos os dias, porque essa é a vida, nenhum dia é igual, e eu queria muito que mais pessoas conseguissem enxergar isso. Viajar não faz seus problemas desaparecerem, fugir não é a solução.


O texto ficou maior do que eu imaginava, pois precisei dar algumas explicações introdutórias; provavelmente os próximos serão menores e, espero, bastante interessantes. Afinal, ainda preciso falar sobre as diferenças culturais e todas as coisas estranhas que eu encontrei por aqui.

0 comentários:

Postar um comentário

 
♥ Theme por Maidy Lacerda, do Dear Maidy, exclusivo para Metamorfisa © 2015 • Todos os direitos reservados • Topo