Uma desconstrução que constrói um novo olhar sobre o que vemos todos os dias.
(Foto: Ilustração) |
-Amor...? Podemos conversar?
Está trabalhando em algo muito sério?
-Sempre estou, não é mesmo?
Afinal, alguém precisa sustentar essa casa.
-É que... Eu queria
conversar...
-Se for rápido, acho que tudo
bem.
-Não sei se vai ser rápido...
-É sobre o quê?
-Foi uma coisa que me
aconteceu, amor... Ontem...
-Que coisa?
-Uma coisa muito séria...
-Aposto que é só mais uma das
suas besteiras de sempre, hormônios ou sei lá. Anda, desembucha logo!
-Bom, você já estava dormindo
quando eu cheguei, lembra? Não quis te incomodar...
-Lembro que fui dormir antes de
você chegar. Mas o que diabos você andou aprontando?
-Eu não sei... Eu acho que não
foi minha culpa...
-Conheço essa história. Não me
diga que andou me traindo – e seu semblante se tornou mais sério.
-Não é nada disso, amor... É
que fizeram uma coisa comigo... Bom, uma pessoa fez... – e mexia as mãos
nervosamente enquanto falava.
-O que essa pessoa fez?
-Eu tinha ido no supermercado
ontem... Quando eu estava saindo, apareceu uma pessoa no estacionamento...
Estava muito escuro, sabe?
-Já disse que não é para você
andar só no escuro! Esse mundo está cada vez mais perigoso, ainda mais para o
sexo frágil. Agora me diga, alguém te machucou?
-A pessoa me deu uma coisa para
beber... Disse que se eu não bebesse ia me machucar... Eu fiquei com muito
medo!
-E o que você fez?
-Eu bebi... Eu estava com muito
medo...
-E depois?
-Eu não lembro... Eu acordei...
Estava tudo estranho... Voltei para casa...
-Mas você não respondeu, a
pessoa te machucou?
-Eu... Eu acho que sim... Eu acho
que fui vítima... – e seus olhos começaram a se encher de lágrimas.
-Vítima de quê?! Roubaram o
carro?
-Não... Eu acho que, mais ou
menos, eu sofri um...
-Um o quê?
-UM ESTUPRO – gritou. E nesse
momento começou a chorar descontroladamente; os soluços impediam a fala de
continuar.
-Como assim?! Como isso é
possível?! – e sua face demonstrava sua preocupação – O que você estava
vestindo?
-Eu não lembro! – mais
lágrimas.
-E POR QUE INVENTOU DE SAIR SÓ
NO ESCURO? POR QUE NÃO COLOCOU UMA CALÇA? APOSTO QUE ESTAVA USANDO AQUELA COISA
NO CABELO TAMBÉM!
-Me... Desculpe! – soluços
descontrolados, lágrimas a fio – Acha que... Devemos ir para a polícia?...
-Claro que não! Imagine que
vergonha para mim se souberem no trabalho que deixei isso acontecer, que pensarão
de mim? Que não consigo nem segurar você em casa, que é desculpa, QUE FOI
TRAIÇÃO.
-Como você pode pensar isso? Eu
nunca te trairia – e o choro foi ficando mais forte.
-Não sei disso não.
-Amor...
-Não me chame de amor. Saia. Eu
preciso de um tempo – e se retirou para a cozinha. Bebeu inúmeras doses de
Vodka e, cambaleando, se dirigiu ao quarto, de onde vinha o som de soluços
descontrolados.
-Por favor, será que você pode
me perdoar agora? – disse a voz que a pouco estava emitindo os soluços, cuja
face estava molhada de tanto chorar.
-A CULPA É TODA SUA – disse a
voz embriagada.
-EU SEI! MAS NÃO VOU DEIXAR
ACONTECER DE NOVO! – mais lágrimas.
-EU NÃO SEI SE CONSIGO
ACREDITAR – e se dirigiu para o armário, de onde tirou um cinto grosso – Você
precisa aprender a nunca mais se comportar assim.
-POR FAVOR! EU JÁ PEDI PERDÃO!
NÃO FAÇA ISSO, AMOR – e o desespero substituiu as lágrimas.
No dia seguinte à essa cena, uma notícia foi
publicada em um jornal que tinha, de acordo com todos os seus editoriais, a intenção explícita de propagar ideias de igualdade entre os sexos:
“ESPOSA
ESPANCA MARIDO ATÉ A MORTE
"Mais um caso de homicídio retrata o momento pavoroso que
nossa sociedade está vivendo, uma sociedade matriarcal ao extremo, na qual os
homens são diminuídos e reprimidos por todo e qualquer ato. Na madrugada de
ontem (4), na Zona Norte de Natal/RN, um ato estupro, seguido de assassinato
ocorreu.
Maíra Alvez, 45 anos, gerente de uma empresa de
marketing, ao descobrir sobre um suposto caso de traição do marido, José Alvez,
30 anos, e assolada pela ideia da vergonha que iria sentir no dia seguinte no
trabalho, resolveu, em suas palavras “ensinar ele a se comportar direito”. Admitiu
tê-lo espancado até que parasse de reagir, mas não tinha a intenção, alega, de
mata-lo.
A autópsia de José Alvez, realizada na mesma tarde do
dia de sua morte, revelou que ele havia sido submetido a substâncias que o
mantiveram semi-inconsciente e com o pênis ereto por, pelo menos, 5 horas
seguidas em um período estipulado em 24-48 horas antes de sua morte. Marcas no
corpo do homem, encontradas durante o procedimento, indicam que ele teria sido vítima
de estupro.
Em seu julgamento, Maíra mostrou-se um tanto surpresa
com as descobertas da autópsia. Admitiu que o marido tinha tentado conversar
com ela sobre isso, todavia, movida pelo ciúmes, achou que se tratasse de uma
“mera desculpa para foder com outra qualquer”. Por fim, foi inocentada,
alegando ter tido um surto psicótico e estar sob influência de substâncias
entorpecentes.
Líderes do movimento machista no país já se
posicionaram frente ao caso e iniciaram uma ação contra Maíra, indignados com o
resultado do julgamento.
Nota: É preciso destacar que o movimento machista luta
pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, não defendendo, de maneira
alguma, a superioridade do homem sobre a mulher. Apesar de estar ganhando mais
notoriedade no século XXI, ainda vemos muito mais presidentes mulheres, C.E.O.s
mulheres, e cargos do mais alto escalão, em geral, ocupados por mulheres.
Também é gritante a quantidade de homens que têm tais cargos negados apenas em
razão de seu sexo.
Hoje, em solidariedade a todos os homens que sofrem
por ter nascido desse sexo, esse jornal, que tem um compromisso com a
integridade dos direitos de todos os seres humanos, gostaria de prestar seu
repúdio para com todos aqueles que, apesar da realidade escancarada, ainda se
mostram a favor da superioridade feminina e da violência que é empregada aos
homens desde os tempos mais remotos. E, por fim, deixar registrado seu apelo por uma
sociedade mais compreensiva.”
Comentários (8):
Amanda Medeiros Silva: “ACHEI BEM FEITO PRA ESSE IDIOTA
APRENDER QUE LUGAR DE HOMEM É EM CASA LAVANDO LOUÇA! TEM QUE BATER
MESMO!!!!!!!!!”
Juliana Elizabeth: “Não sou contra o machismo nem
nada, mas é muito óbvio que as mulheres são superiores, tipo, até a ciência já
comprovou e tudo mais. Além disso, homem não tem que servir no exército nem
nada, só tem que ficar em casa cuidando de tudo, não tem nada pra reclamar, e
ainda são sustentados pela mulher! Não entendo essa luta estranha deles, porque
tipo, o que mais eles querem além de toda a mordomia que já tem??????????? Não
que o homem aí merecesse morrer nem nada, mas uma surrinha básica realmente não
iria mal”
Aluízio Fontes: “Espero que essa mulher receba a
devida punição. Que mundo é esse no qual, quando os homens traem merecem morrer
e quando as mulheres matam merecem liberdade? No qual a culpa do estupro ainda
é atribuída à vítima e ela ainda sai da situação como mentirosa.”
Antônio Figueiredo: “Pois é, Aluízio, já evoluímos
tanto na tecnologia, quando vamos evoluir na moral?”
Ana Marcilene: “Iiiiiiiii, olha os machista aí
tentando aglomerar! Meus filho, acorda, é claro que ele merecia aquela surra.
Se morreu foi bem feito, ninguém mandou ir andar no escuro. Aposto que tava
traindo mesmo e é isso ae”
Regina Soares: “Tipo, coitado, por causa do estupro e
tudo mais, mas, realmente, se ele tava de bermuda ou sei lá, meio que a culpa
também foi dele, né? Tipo, todo mundo sabe como as coisas tão perigosas e se a
mulher tava lá e viu e curtiu, ele deve ter feito alguma coisa pra chamar
atenção. Mas acho exagero essas coisas dos machistas, sem necessidade, homem já
tem muita lei protegendo”.
Mariana Valverde: “Concordo, Regina! Já tem João da
Penha pra eles, delegacia do homem. São praticamente superiores! E querem mais
o quê? Esses machistas são tudo homem que não tem mulher pra cuidar e fica aí
querendo chamar atenção”
Ana Cleide: "Só não entendo porque não tem machista pregando lá no oriente onde tem toda aquela ditadura feminina forte e tudo mais... Aqui já tem direito igual, vão pra lá!"
Para evitar quaisquer desentendimentos, quero pontuar aqui que a história, bem como a notícia e seus comentários são fictícios. Trata-se, simplesmente, de um retrato da nossa sociedade, visto através de um espelho. Ou seja, ao contrário. Como seria se os homens fossem tratados como as mulheres? O que eu escrevi trata de uma situação tão estereotipada por nós como algo que ocorre só com mulheres que, sem a identificação das personagens, é comum pensar que a vítima do estupro foi uma mulher. Por se tratar de um homem, a notícia choca, mas, nesse mundo que eu criei, é como se nós estivéssemos lendo sobre uma mulher. Nesse mundo, isso é comum. E os comentários? Pode-se, facilmente, encontrar similares não só em notícias verdadeiras sobre o tema, mas em vídeos, publicações, textos, etc.
Esse texto foi uma demonstração escancarada da luta diária da mulher. Das violências que a mulher sofre e nos recusamos a ver. E não estou tratando só do estupro ou do espancamento, mas do conteúdo dos comentários, que também são violentos. Diminuir a mulher é violentá-la, tratá-la como "sexo frágil" é violentá-la. E atribuir a situação do diálogo a uma discussão na qual a mulher conta sobre um estupro e o homem a espanca é um reflexo das crenças, valores, da cultura, enfim, da nossa sociedade. Isso não vai mudar de um dia para o outro, mas o Dia Internacional da Mulher existe para inspirar que essa luta continue.
No dia da mulher, a sociedade precisa enxergar de verdade a situação do sexo feminino, sem as máscaras da cultura, do costume. Se a história causa confusão é porque os papeis estão trocados. Mas quem, a priori, os estabeleceu? Em vez de usar esse dia apenas para glorificar a mulher, mãe, cuidadora do lar, vamos usá-lo para pensar o que significa ser mulher e por que existe uma ideia estabelecida do que é ser uma mulher.
Vamos homenagear com esse dia não só as "mulheres-modelo", mas as negras, as pardas, as índias, as gordas, as magras, as cis, as trans, as altas, as baixas, as que se encaixam no padrão, as que não se encaixam. Vamos lembrar que ser mulher, acima de tudo, é ser humano.
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