8 de março de 2016

Uma situação cotidiana, um mundo paralelo

Uma desconstrução que constrói um novo olhar sobre o que vemos todos os dias.
(Foto: Ilustração)


        -Amor...? Podemos conversar? Está trabalhando em algo muito sério?


-Sempre estou, não é mesmo? Afinal, alguém precisa sustentar essa casa.

-É que... Eu queria conversar...

-Se for rápido, acho que tudo bem.

-Não sei se vai ser rápido...

-É sobre o quê?

-Foi uma coisa que me aconteceu, amor... Ontem...

-Que coisa?

-Uma coisa muito séria...

-Aposto que é só mais uma das suas besteiras de sempre, hormônios ou sei lá. Anda, desembucha logo!

-Bom, você já estava dormindo quando eu cheguei, lembra? Não quis te incomodar...

-Lembro que fui dormir antes de você chegar. Mas o que diabos você andou aprontando?

-Eu não sei... Eu acho que não foi minha culpa...

-Conheço essa história. Não me diga que andou me traindo – e seu semblante se tornou mais sério.

-Não é nada disso, amor... É que fizeram uma coisa comigo... Bom, uma pessoa fez... – e mexia as mãos nervosamente enquanto falava.

-O que essa pessoa fez?

-Eu tinha ido no supermercado ontem... Quando eu estava saindo, apareceu uma pessoa no estacionamento... Estava muito escuro, sabe?

-Já disse que não é para você andar só no escuro! Esse mundo está cada vez mais perigoso, ainda mais para o sexo frágil. Agora me diga, alguém te machucou?

-A pessoa me deu uma coisa para beber... Disse que se eu não bebesse ia me machucar... Eu fiquei com muito medo!

-E o que você fez?

-Eu bebi... Eu estava com muito medo...

-E depois?

-Eu não lembro... Eu acordei... Estava tudo estranho... Voltei para casa...

-Mas você não respondeu, a pessoa te machucou?

-Eu... Eu acho que sim... Eu acho que fui vítima... – e seus olhos começaram a se encher de lágrimas.

-Vítima de quê?! Roubaram o carro?

-Não... Eu acho que, mais ou menos, eu sofri um...

-Um o quê?

-UM ESTUPRO – gritou. E nesse momento começou a chorar descontroladamente; os soluços impediam a fala de continuar.

-Como assim?! Como isso é possível?! – e sua face demonstrava sua preocupação – O que você estava vestindo?

-Eu não lembro! – mais lágrimas.

-E POR QUE INVENTOU DE SAIR SÓ NO ESCURO? POR QUE NÃO COLOCOU UMA CALÇA? APOSTO QUE ESTAVA USANDO AQUELA COISA NO CABELO TAMBÉM!

-Me... Desculpe! – soluços descontrolados, lágrimas a fio – Acha que... Devemos ir para a polícia?...

-Claro que não! Imagine que vergonha para mim se souberem no trabalho que deixei isso acontecer, que pensarão de mim? Que não consigo nem segurar você em casa, que é desculpa, QUE FOI TRAIÇÃO.

-Como você pode pensar isso? Eu nunca te trairia – e o choro foi ficando mais forte.

-Não sei disso não.

-Amor...

-Não me chame de amor. Saia. Eu preciso de um tempo – e se retirou para a cozinha. Bebeu inúmeras doses de Vodka e, cambaleando, se dirigiu ao quarto, de onde vinha o som de soluços descontrolados.

-Por favor, será que você pode me perdoar agora? – disse a voz que a pouco estava emitindo os soluços, cuja face estava molhada de tanto chorar.

-A CULPA É TODA SUA – disse a voz embriagada.

-EU SEI! MAS NÃO VOU DEIXAR ACONTECER DE NOVO! – mais lágrimas.

-EU NÃO SEI SE CONSIGO ACREDITAR – e se dirigiu para o armário, de onde tirou um cinto grosso – Você precisa aprender a nunca mais se comportar assim.

-POR FAVOR! EU JÁ PEDI PERDÃO! NÃO FAÇA ISSO, AMOR – e o desespero substituiu as lágrimas.




No dia seguinte à essa cena, uma notícia foi publicada em um jornal que tinha, de acordo com todos os seus editoriais, a intenção explícita de propagar ideias de igualdade entre os sexos:


ESPOSA ESPANCA MARIDO ATÉ A MORTE

"Mais um caso de homicídio retrata o momento pavoroso que nossa sociedade está vivendo, uma sociedade matriarcal ao extremo, na qual os homens são diminuídos e reprimidos por todo e qualquer ato. Na madrugada de ontem (4), na Zona Norte de Natal/RN, um ato estupro, seguido de assassinato ocorreu.

Maíra Alvez, 45 anos, gerente de uma empresa de marketing, ao descobrir sobre um suposto caso de traição do marido, José Alvez, 30 anos, e assolada pela ideia da vergonha que iria sentir no dia seguinte no trabalho, resolveu, em suas palavras “ensinar ele a se comportar direito”. Admitiu tê-lo espancado até que parasse de reagir, mas não tinha a intenção, alega, de mata-lo.

A autópsia de José Alvez, realizada na mesma tarde do dia de sua morte, revelou que ele havia sido submetido a substâncias que o mantiveram semi-inconsciente e com o pênis ereto por, pelo menos, 5 horas seguidas em um período estipulado em 24-48 horas antes de sua morte. Marcas no corpo do homem, encontradas durante o procedimento, indicam que ele teria sido vítima de estupro.

Em seu julgamento, Maíra mostrou-se um tanto surpresa com as descobertas da autópsia. Admitiu que o marido tinha tentado conversar com ela sobre isso, todavia, movida pelo ciúmes, achou que se tratasse de uma “mera desculpa para foder com outra qualquer”. Por fim, foi inocentada, alegando ter tido um surto psicótico e estar sob influência de substâncias entorpecentes.

Líderes do movimento machista no país já se posicionaram frente ao caso e iniciaram uma ação contra Maíra, indignados com o resultado do julgamento.

Nota: É preciso destacar que o movimento machista luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, não defendendo, de maneira alguma, a superioridade do homem sobre a mulher. Apesar de estar ganhando mais notoriedade no século XXI, ainda vemos muito mais presidentes mulheres, C.E.O.s mulheres, e cargos do mais alto escalão, em geral, ocupados por mulheres. Também é gritante a quantidade de homens que têm tais cargos negados apenas em razão de seu sexo.

Hoje, em solidariedade a todos os homens que sofrem por ter nascido desse sexo, esse jornal, que tem um compromisso com a integridade dos direitos de todos os seres humanos, gostaria de prestar seu repúdio para com todos aqueles que, apesar da realidade escancarada, ainda se mostram a favor da superioridade feminina e da violência que é empregada aos homens desde os tempos mais remotos. E, por fim, deixar registrado seu apelo por uma sociedade mais compreensiva.”

Comentários (8):

Amanda Medeiros Silva: “ACHEI BEM FEITO PRA ESSE IDIOTA APRENDER QUE LUGAR DE HOMEM É EM CASA LAVANDO LOUÇA! TEM QUE BATER MESMO!!!!!!!!!”

Juliana Elizabeth: “Não sou contra o machismo nem nada, mas é muito óbvio que as mulheres são superiores, tipo, até a ciência já comprovou e tudo mais. Além disso, homem não tem que servir no exército nem nada, só tem que ficar em casa cuidando de tudo, não tem nada pra reclamar, e ainda são sustentados pela mulher! Não entendo essa luta estranha deles, porque tipo, o que mais eles querem além de toda a mordomia que já tem??????????? Não que o homem aí merecesse morrer nem nada, mas uma surrinha básica realmente não iria mal”

Aluízio Fontes: “Espero que essa mulher receba a devida punição. Que mundo é esse no qual, quando os homens traem merecem morrer e quando as mulheres matam merecem liberdade? No qual a culpa do estupro ainda é atribuída à vítima e ela ainda sai da situação como mentirosa.”

Antônio Figueiredo: “Pois é, Aluízio, já evoluímos tanto na tecnologia, quando vamos evoluir na moral?”

Ana Marcilene: “Iiiiiiiii, olha os machista aí tentando aglomerar! Meus filho, acorda, é claro que ele merecia aquela surra. Se morreu foi bem feito, ninguém mandou ir andar no escuro. Aposto que tava traindo mesmo e é isso ae”

Regina Soares: “Tipo, coitado, por causa do estupro e tudo mais, mas, realmente, se ele tava de bermuda ou sei lá, meio que a culpa também foi dele, né? Tipo, todo mundo sabe como as coisas tão perigosas e se a mulher tava lá e viu e curtiu, ele deve ter feito alguma coisa pra chamar atenção. Mas acho exagero essas coisas dos machistas, sem necessidade, homem já tem muita lei protegendo”.


Mariana Valverde: “Concordo, Regina! Já tem João da Penha pra eles, delegacia do homem. São praticamente superiores! E querem mais o quê? Esses machistas são tudo homem que não tem mulher pra cuidar e fica aí querendo chamar atenção”

Ana Cleide: "Só não entendo porque não tem machista pregando lá no oriente onde tem toda aquela ditadura feminina forte e tudo mais... Aqui já tem direito igual, vão pra lá!"


Para evitar quaisquer desentendimentos, quero pontuar aqui que a história, bem como a notícia e seus comentários são fictícios. Trata-se, simplesmente, de um retrato da nossa sociedade, visto através de um espelho. Ou seja, ao contrário. Como seria se os homens fossem tratados como as mulheres? O que eu escrevi trata de uma situação tão estereotipada por nós como algo que ocorre só com mulheres que, sem a identificação das personagens, é comum pensar que a vítima do estupro foi uma mulher. Por se tratar de um homem, a notícia choca, mas, nesse mundo que eu criei, é como se nós estivéssemos lendo sobre uma mulher. Nesse mundo, isso é comum. E os comentários? Pode-se, facilmente, encontrar similares não só em notícias verdadeiras sobre o tema, mas em vídeos, publicações, textos, etc.

Esse texto foi uma demonstração escancarada da luta diária da mulher. Das violências que a mulher sofre e nos recusamos a ver. E não estou tratando só do estupro ou do espancamento, mas do conteúdo dos comentários, que também são violentos. Diminuir a mulher é violentá-la, tratá-la como "sexo frágil" é violentá-la. E atribuir a situação do diálogo a uma discussão na qual a mulher conta sobre um estupro e o homem a espanca é um reflexo das crenças, valores, da cultura, enfim, da nossa sociedade. Isso não vai mudar de um dia para o outro, mas o Dia Internacional da Mulher existe para inspirar que essa luta continue.

No dia da mulher, a sociedade precisa enxergar de verdade a situação do sexo feminino, sem as máscaras da cultura, do costume. Se a história causa confusão é porque os papeis estão trocados. Mas quem, a priori, os estabeleceu? Em vez de usar esse dia apenas para glorificar a mulher, mãe, cuidadora do lar, vamos usá-lo para pensar o que significa ser mulher e por que existe uma ideia estabelecida do que é ser uma mulher.

Vamos homenagear com esse dia não só as "mulheres-modelo", mas as negras, as pardas, as índias, as gordas, as magras, as cis, as trans, as altas, as baixas, as que se encaixam no padrão, as que não se encaixam. Vamos lembrar que ser mulher, acima de tudo, é ser humano.

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