9 de março de 2016

As vidas destruídas que a população esqueceu

Hoje vou começar uma série de textos sobre uma das maiores tragédias que já aconteceu nesse país, noticiada como "a tragédia de Mariana", focando no posicionamento da Samarco (empresa responsável pela barragem que se rompeu) frente ao ocorrido. Nos dois primeiros textos (esse e o próximo), vou analisar 2 peças publicitárias da Samarco e o que elas realmente dizem sobre a empresa e sua responsabilidade para com a tragédia. No terceiro texto farei um breve comentário da situação atual da empresa e das expectativas para o futuro de quem foi afetado pela tragédia e, por fim, um texto sobre as vítimas e os verdadeiros heróis, que estão tentando fazer alguma coisa sobre o ocorrido.
(Foto: Revista Exame. "A lama chega ao mar no Espírito Santo")

Eu moro em uma cidade litorânea, bem perto da praia. Passo pela orla todos os dias quando vou para a universidade e adoro ficar encarando aquela imensidão azul esverdeada e pensando... Dia desses, estava perdida em minhas reflexões: “Imagina que horrível se essa beleza incomensurável fosse perdida, de alguma maneira”. E lembrei do Espírito Santo. Lembrei de como as pessoas que, assim como eu, adoravam apreciar o mar, se perder em pensamentos, mergulhar naquela imensidão, não podem mais fazê-lo, porque a lama alcançou o mar.

Então todos os dias, quando passo pelo mar, sinto um pouco de tristeza, sinto uma conexão empática forte com as pessoas que perderam seu mar. Mais ainda, fico desolada ao pensar nas vidas marítimas que se perderam nesse acontecimento; nas vidas humanas. Por fim, sinto-me extremamente revoltada.

Estamos acostumados com o turbilhão de informações que nos assola todos os dias, assim como com as críticas a isso. Mas quantas vezes se para e se reflete sobre o que isso significa? Essa velocidade informacional, que deixou nossos dias mais curtos, nossas vidas mais rápidas; que destruiu as distâncias, que uniu o mundo; o que ela significa?

Significa que nos esquecemos mais rápido.

A tragédia de Mariana – que deveria ser chamada de tragédia do Rio Doce, afinal, o rio morreu – causada pela mineradora Samarco, ocorreu em novembro de 2015. Estamos em março de 2016. Passaram-se 4 meses. A partir do começo de janeiro, notícias relacionadas à tragédia começaram a ficar cada vez mais escassas, o assunto deixou de ser novidade, não é mais tão “interessante”. E é claro que a Samarco percebeu tudo isso e se utilizou da péssima memória e inocência da população para construir sua nova imagem.

Agora, querem fazer parecer que se trata de uma empresa muito humanitária, que está fazendo uma bondade enorme para as pessoas que afetou com seu descuido. E suas peças publicitárias são tão tocantes, sentimentalmente, são tão bem elaboradas, que algumas pessoas caem na armadilha e pensam: “Ah, pelo menos ela está fazendo alguma coisa, ela é tão boazinha!”. 


Não. A Samarco não é boazinha. A Samarco está cumprindo um dever, está enfrentando as consequências de seus atos. Não se enganem, não existe essa bondade imaculada no cerne dessas empresas multimilionárias (o que podemos perceber ao notar que a Vale – que antes era “Do Rio Doce” – parece querer se distanciar da responsabilidade de ser acionista da empresa).

Além disso, laudos comprovam que a Samarco já estava ciente dos riscos que a estrutura de sua barragem apresentava e não entregou de modo adequado os documentos exigidos para o seu licenciamento. O que aconteceu, portanto, não foi um acidente, como ela tenta pregar. Foi fruto de negligência extrema por parte de uma empresa que, apesar do que tenta demonstrar com suas peças publicitárias, não se importa realmente com as consequências que suas estruturas podem causar tanto ao meio ambiente quanto à população.



Nós, da Samarco, reafirmamos nossa profunda consternação pelo acidente ocorrido. Já, desde o primeiro momento, mobilizamos todos os recursos disponíveis, humanos e financeiros, para atender às emergências e buscar soluções. Estamos trabalhando incessantemente e contando com muitos apoios. Agradecemos a todos que, direta ou indiretamente, estão prestando sua solidariedade às comunidades e à Samarco. Neste momento, estamos sendo muito questionados, mas continuamos firmes para esclarecer os fatos. Somos mais de 3 mil pessoas orgulhosas do trabalho que realizamos há 40 anos no Brasil. E continuaremos fazendo o que deve ser feito. Esse é o nosso compromisso, o compromisso da Samarco.”

Dentre as diversas frases questionáveis nessa peça publicitária, destaquei quatro para discutir, uma escolha movida, em especial, porque não tenho informações suficientes para afirmar se existe ou não essa mobilização dentro da empresa para buscar soluções – apesar de duvidar muito disso.

  1.  De início, é perceptível a tentativa da Samarco de se mostrar à parte do problema. Com a primeira frase destacada, percebemos uma escolha de palavras muito bem planejada: “profunda”, para dar intensidade aos seus sentimentos; “acidente”, talvez a palavra mais séria em toda a frase. Ao utilizar o termo “acidente” para caracterizar o ocorrido, eles tentam se isentar da culpa. Um acidente é algo inevitável, é uma coisa que acontece “sem querer”. Pode não ter sido o objetivo da Samarco causar uma tragédia, mas essas empresas têm perfeita noção dos riscos de suas empreitadas e capital suficiente para evitar que ocorram. Se é algo que poderia ter sido evitado e não o foi por causa de negligência, não foi um acidente.
  2.  Em seguida, eles continuam tentando se manter à parte da situação; querem se mostrar como afetados e não culpados. Pode parecer, a priori, um tanto inepto da parte deles agradecer por uma suposta solidariedade prestada à empresa responsável pela tragédia. Como alguém pode ser solidário com isso? Mas talvez essa seja a questão. Ao afirmar que está sendo prestada solidariedade, a Samarco começa a construir seu ethos* de vítima, implicitamente, ela quer dizer: “A culpa não foi nossa, também estamos consternados com isso, obrigada pela solidariedade”.
  3.  A construção dessa frase por completo faz parecer que quem está questionando a Samarco é o verdadeiro vilão e que a empresa é a “forte”, que luta contra isso e se mantém “firme para esclarecer os fatos”. A palavra “firme” não foi escolhida por acaso. E na construção frasal está associada à bravura da empresa de responder a questionamentos, como se não fosse nada além do seu dever.
  4.  Por fim, a pior parte dessa peça: “Esse é o nosso compromisso, o compromisso da Samarco”.  É imprescindível notar que em momento nenhum esse compromisso ficou claro. Qual seria ele? “Fazer o que deve ser feito?”. E, nesse caso, se for, o que é isso que “deve ser feito”. São frases escolhidas minuciosamente para serem assim, abertas à qualquer interpretação que, em razão da estrutura geral do texto, podem ser positivas se desprovidas de posicionamento crítico.

   Esse deveria ser um comunicado de desculpas às pessoas cujas vidas devastaram, mas em momento nenhum a Samarco se responsabiliza ou se desculpa pelos fatos ocorridos, tratando-os como inevitáveis e se afirmando como parte do conjunto de vítimas. A frase escolhida para finalizar a peça tenta criar a ilusão de que se falou de algum compromisso real durante o vídeo, quando isso não ocorreu. Tudo é muito aberto a interpretações variadas, tudo é muito vazio. 


E, mais ainda, existem falhas graves de consistência nessa peça: “... mobilizamos todos os recursos disponíveis”. Claro que não mobilizaram; isso significaria extinguir o lucro da empresa, falir, propriamente. Uma empresa não mobiliza todos os seus recursos para lidar com uma catástrofe, somente o necessário – algumas nem isso. O exagero, a vitimização e tentativa de humanizar a empresa são as marcas gritantes dessa primeira peça, também presentes nas outras, de modo ainda mais inadequado.

No fim das contas, a empresa não se importa com nada disso, porque na televisão as pessoas não pode pausar, ouvir melhor, anotar, analisar. Elas veem a mensagem uma vez e precisam absorver tudo aquilo rapidamente, não há reflexão. Seu objetivo é alcançado: parece que eles se importam e estão fazendo alguma coisa sobre isso.

No próximo texto, veremos com mais clareza ainda essa necessidade da empresa de se vitimizar e o quanto ela depende da ausência de análise de suas mensagens vazias, valendo-se, principalmente, de imagens e trilha sonora que movem as emoções da audiência, fazendo com que ela prescinda de pensar mais a respeito. 


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