10 de março de 2016

"Nós também somos vítima"

(Foto: Revista Exame. A cidade devastada por resíduos tóxicos)
No último texto eu fiz a primeira análise sobre o posicionamento público da Samarco frente à tragédia que causou. Lá também chamei atenção para a negligência da empresa, uma vez que sabia do risco de rompimento da barragem, e para o fato de ter tido um licenciamento, até certo ponto, irregular, em razão de sua irresponsabilidade.

Antes de começar com o texto, quero falar sobre um fato já conhecido, mas ao qual acredito não ter dado atenção suficiente. A barragem que se rompeu, a barragem do Fundão, estava contendo resíduos tóxicos liberados pela Samarco, uma empresa de mineração. A lama, que destruiu cidades, vidas, e alcançou o mar, não é "só lama", e chamá-la assim, de certo modo, desvia a seriedade do que nela está contido.

São resíduos tóxicos. Eles matam

Não foi só um rompimento que inundou e matou; ele tem a capacidade de continuar matando, mesmo depois que já acabou a onda, porque ele contém resíduos tóxicos. Vou repetir isso bastante mesmo, porque, em geral, associamos barragens à água e sua contenção. Também teria ocorrido uma tragédia se fosse uma barragem de água, mas ela não se prolongaria como essa vai, porque a água, afinal, é fonte de vida.

E eu resolvi falar sobre isso agora porque nem na última peça analisada, nem nessa, há alguma menção ao conteúdo perigosíssimo que estava contido no Fundão. Essa omissão, decerto proposital, pode, de algum modo, fazer com que as pessoas não enxerguem o assunto com a seriedade necessária.

A mídia fala de "lama". Ela poderia falar de "resíduos tóxicos" - vou repetir mais uma vez mesmo, quero que isso fique bem claro na mente de todos. A toxidade dessa lama só está contida no interior das matérias, que podem nem ser lidas por completo. A toxidade dessa lama está matando. Mas associamos lama a barro, algo inofensivo. 

Essa lama não é inofensiva, é mortal

E o fato de a empresa não se posicionar sobre isso revela muito sobre suas segundas intenções.

Agora que essa questão que tanto me incomodava foi esclarecida, podemos seguir com as análises. Hoje vou falar sobre outra peça publicitária da Samarco, talvez mais conhecida que a primeira, com um apelo, certamente, muito maior.





Essa peça publicitária possui formato testemunhal, ou seja, utiliza-se de personalidades para falar a favor do que está sendo defendido na propaganda. As opções enunciativas desse discurso se dão em razão da imagem que se tem de seu enunciatário. Ela é eficaz, até certo ponto, considerando o público que visa atingir. Ou seja, a grosso modo, a camada acrítica da sociedade, que não possui interesse em questionar e se mostra disposta a, simplesmente, aceitar as mensagens que lhe são transmitidas. Deve-se pontuar que não necessariamente apenas o "povão" constitui essa camada, mas qualquer um que opte por aceitar de primeira o conteúdo contido na peça. 

Achei irrelevante transcrever todas as falas contidas nela, então vou fazê-lo só com algumas, as mais interessantes de se analisar:


1.     É sempre bom olhar para todos os lados - esse é o título da peça publicitária, que expressa, claramente, uma tentativa de tornar a empresa a vítima da situação, cujo lado não foi ouvido, como se ela não tivesse culpa do que aconteceu. Esse título resume bem a intenção final da Samarco: construir a imagem de uma empresa que não teve culpa da tragédia que ocorreu e foi mal interpretada e acusada erroneamente pela mídia. Infelizmente, ela falha em passar uma mensagem concreta nessa peça. Para a felicidade da mineradora, porém, ao ser veiculado na televisão, as pessoas tendem a não interpretar com tanta profundidade o anúncio, uma vez que ele passa rápido demais e não se pode voltar. Afinal, a Samarco tem bastante clareza do público que pretende atingir.

2.     Uma empresa com 38 anos de história”;
12 maior exportadora do Brasil”;
6 mil empregos diretos”;
Essas três mensagens, que aparecem em formato textual e letra branca, não tão perceptível ao longo da peça, têm a intenção de agregar valor à empresa. São colocadas ali com a intenção de transmitir para o público informações sobre a Samarco que constituem valores importantes para a sociedade. O que as mensagens contém implícito:

Ela tem 38 anos de história, é uma empresa antiga, já está no ramo a muito tempo e essa foi, supostamente, a única vez em que um acidente de tamanha magnitude ocorreu; não podemos descartar os outros 37 anos na qual sua conduta foi, mais uma vez, supostamente, tão adequada.

Ela é a décima segunda maior exportadora do Brasil, ou seja, faz muito bem para a economia, está contribuindo para o país de alguma forma. É uma empresa grande, importante.

Ela gera emprego. Trabalhar é algo muito positivo na sociedade brasileira, portanto, se você gera trabalho, você beneficia pessoas, você é uma empresa “legal”.


3.   Poucas pessoas conheciam a Samarco, né
Uma coisa muito séria que aconteceu, a barragem se rompeu”;
Foi uma comoção total, a partir daí a gente já nem conseguia trabalhar direito”;
Nesse momento, implicitamente, atribui-se à falta de notoriedade da empresa um aspecto positivo e argumenta-se que é um engano das pessoas atribuir culpa à Samarco por causa da tragédia; não deveriam estar vendo-a só agora que deu tudo errado e ficou feio para ela. Afinal, eles estão cientes de que foi uma coisa muito séria e, mais ainda, aconteceu uma comoção extrema lá, em razão desse acontecimento. Eles nem conseguiam trabalhar direito! Ou seja, esse acidente também os afetou, e muito. Enquanto a natureza era devastada, pessoas perdiam suas casas e resíduos tóxicos flutuavam livremente, eles não conseguiam trabalhar direito! Há, portanto, uma tentativa de tornar esse fato uma parte significativa da tragédia.

4.   Aí a gente falou “não, de alguma maneira a gente quer ajudar, de qualquer forma””;
De repente a gente amanheceu com essa missão de acolher as pessoas”;
A gente abriu os braços, falou “Po, tamo aqui””;
A maneira como eles colocam sua decisão de ajudar as pessoas faz parecer que não era uma obrigação, mas uma escolha da empresa decidir se seria bom ou não fazer isso. Então eles começam a construção da imagem de uma empresa humanitária, que “de repente” se viu frente a uma tragédia e teve que ajudar. Abriram os braços! “Tamo aqui!”. Para a sorte deles, talvez muitas pessoas realmente vejam isso como um ato benevolente por parte da empresa, talvez muita gente pense “Caramba, que legal da parte deles ter ido ajudar, né?”.

5.     Então eles podem passar para a parte na qual, rapidamente, assumem a culpa, por um momento, quase imperceptível, mas só depois de deixar claro que o que estavam fazendo pelas  pessoas afetadas com a tragédia era algo muito humano e bom da parte deles, algo que eles fizeram porque são legais, não porque, além de ser sua obrigação, se não tivessem feito a empresa sofreria repressões ainda piores, tanto por parte do governo quanto por parte da mídia e da população.
Todo mundo vestiu a camisa e tá fazendo o possível pra minimizar os danos que a gente causou”;

6.  Chegamos, então, à última enunciação da peça. Essa, de longe, é a parte mais sem noção de todo o vídeo. Frases que, simplesmente, estão vazias de significado, colocadas  com uma música de fundo bonita, pessoas sorridentes com cachorrinhos. Gostaria de chamar atenção para os cachorrinhos filhotes que aparecem no final do vídeo e perguntar qual sua relação com tudo isso se não apenas causar uma comoção emocional nos expectadores. Eis a parte à qual me refiro:
Desde antes do acidente nós tínhamos uma forma diferente de trabalhar, e isso ficou potencializado nessa situação. As pessoas se percebendo, né, como importantes, e as pessoas desejando estar juntas pra poder somar forças e fazer o que deve ser feito;

Primeiro fala-se de uma “forma diferente de trabalhar”, que se potencializou com a tragédia. Mas não se diz que forma diferente é ela. E diferente não é sinônimo de bom. Ou seja, no geral, essa frase não significa nada, mas tem a intenção de passar para o público que essa forma “diferente” da Samarco conduzir sua empresa seja benéfica, afinal, tudo se passa em um ambiente calmo, com funcionários antigos, felizes. 

Utilizar o termo “potencializado” também não aconteceu por acaso. Ele indica intensidade; uma forma diferente, que agora está muito mais intensa em sua forma de ser. O ambiente, a música, tudo contribui para chegar à conclusão de que se está referindo a algo bom. Como a mensagem é transmitida em televisão, como já disse, não há tempo para analisar direito a mensagem e essas são as conexões que o cérebro forma a priori.

Em seguida, há uma tentativa de humanizar a empresa, pois fala-se muito nas pessoas, que estão se percebendo como “importantes”, o que, inclusive, não faz nenhum sentido no contexto da mensagem geral. Afinal, e daí se as pessoas se percebem como importantes e querem estar juntas para “somar forças e fazer o que deve ser feito”? A culpa de tudo é da empresa, não das pessoas, e parece que, ao trazer as “pessoas” -  que o expectador não faz ideia de quem sejam, mas atribui à parte da empresa, uma vez que se trata do comercial da Samarco – para o âmbito de discussão, além de se humanizar, a Samarco quer enfatizar essa “soma de forças” feita para solucionar o problema. Um problema causado pela empresa, não pelas pessoas. Uma responsabilidade da empresa, não das pessoas. É claro que pessoas alheias à situação podem se comover e decidir ajudar, como aconteceu, mas isso não está, necessariamente, agregado aos atos da própria Samarco.

Por fim, não consigo achar mera coincidência que, depois de falar coisas desconexas, a mulher acabe falando justamente a frase que marca toda essa campanha de reconstrução de imagem da Samarco: “Fazer o que deve ser feito”.

E o que, enfim, “deve ser feito”?

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