Não é novidade que autores clássicos são atemporais. Nessa análise, vou falar sobre o conto O sonho de um homem ridículo, de Fiódor Dostoiévski, destacando determinados pontos para fazer comparações com os dias de hoje, levantando algumas reflexões e comentando as críticas feitas pelo autor em seu conto.
(Imagem: Aleksandr Petrov) |
Não é novidade que autores clássicos são atemporais. Nessa análise, vou
falar sobre o conto O sonho de um homem ridículo, de Fiódor Dostoiévski,
destacando determinados pontos para fazer comparações com os dias de hoje, levantando
algumas reflexões e comentando as críticas feitas pelo autor em seu
conto. Como sempre, o autor faz um
ótimo trabalho ao penetrar as entranhas do ser humano e escancarar seu íntimo
com uma narrativa avassaladora e reflexiva. Considerando, principalmente, as
condições em que esse livro – e a maioria dos livros de Dostoiévski – foi
escrito, ou seja, com grande pressão para receber dinheiro, pois essa era a
única fonte de sua família, nessa época já muito pobre e devastada, é possível
inferir que as críticas ao sistema capitalista e a necessidade de salvação
através de Deus refletem apenas o que se passava no interior do próprio autor –
o que não faz com que deixem de ser geniais.
No início da narrativa, a personagem, cujo nome nunca
nos é revelado, já diz se considerar um homem ridículo, que sempre possuiu
consciência desse fato. Isso, contudo, pelo menos por mim, foi ficando
esquecido ao longo da história, todavia, é um fato de importante reflexão.
Afinal, esse homem ridículo representa os pensamentos e angústias do homem
comum; representa a indiferença que atribuímos à sociedade, tratando coada
indivíduo como parte de um conjunto e não como um ser único.
Apesar de ser consciente de sua condição, em momento
algum, pelo menos não explicitamente, é revelada a razão de ele se considerar
ridículo; muito menos o porquê de também as outras pessoas pensarem assim. Só o
que ele diz é que, apesar de saber ser ridículo, era orgulhoso demais para
confessá-lo a alguém e que, ao amadurecer, foi se tornando indiferente ao mundo
ao redor. E é essa indiferença que o leva a decidir se matar, todavia, deixa
bem claro que até a essa decisão era indiferente.
Essa indiferença se assemelha em muito à situação de
muitas pessoas, hoje, sempre. Quando a vida se torna só mais uma coisa da
rotina, quando não parece importante ter objetivos grandiosos, ou atividades
para distração, vai-se tornando indiferente.
Na noite em que escolheu morrer, quando o homem estava
voltando para casa, deparou com uma menininha desesperada, que pedia ajuda.
Indiferente, ele a ignora. Então, como é sua última noite de vida e, depois,
nada mais vai importar, ele decide enxotá-la rudemente. Quando está sentado em
frente ao revólver, prestes a cometer o tão esperado suicídio, ele sente
compaixão pela menina. E se indigna com seus sentimentos; não só por ter sido
indiferente por tanto tempo e agora ter demonstrado para si um sentimento, mas
porque em poucos minutos tudo ia acabar, de que adiantava sentir?
Mergulhado em seus pensamentos, o homem cai no sono e
dá início a um dos maiores sonhos já narrados na Literatura. Não é do
interesse, para essa análise, resumir também o sonho, mas tratar de aspectos
abordados nele pelo autor que escancaram as entranhas do “mal” da humanidade e,
depois, fazer uma crítica à utopia por ele descrita. É importante, porém, ter
em mente um esboço do mundo que ele descreveu: as pessoas eram boas, muito
boas, viviam em paz e harmonia com os animais, e não tinham conhecimento das
ciências que existem hoje, nem de qualquer coisa negativa, como mentira,
hipocrisia. Acima de tudo, eles eram muito felizes, uma felicidade pura, que
não estava sempre buscando conhecimento e metas para se estabelecer; era plena.
O clímax do sonho se dá quando o homem ridículo acredita ter corrompido essa
perfeição com a sua presença naquele “paraíso”.
Para essa análise, vou desconsiderar o viés religioso
da obra e fazer algumas comparações com os dias atuais.
Inúmeras são as partes que me chamaram a atenção,
porém selecionei apenas 4, para o texto não ficar grande demais e para que,
caso você decida ler, possa fazer suas próprias reflexões sobre outros pontos
sem a influência das minhas:
“Começou a
luta pela separação, pela autonomia, pela individualidade, pelo meu e pelo
teu.”
“Quando se
tornaram maus, começaram a falar em fraternidade e humanidade e entenderam
essas ideias.”
“Quando se
tornaram criminosos, conceberam a justiça e prescreveram a si mesmos códigos
inteiros para mantê-la, e para garantir os códigos instalaram a guilhotina.”
Nessa parte do sonho, claramente, Dostoiévski faz
alusões históricas em sequência, começando pela Antiguidade, passando pelo
Renascimento, etc., e, mais adiante, à modernidade.
Essa luta a qual se refere o autor se tratava de
outra muito anterior, mas é perfeitamente comparável à luta da modernidade. A
luta por uma autonomia forçada frente à natureza, a separação do ser humano
como superior. Uma luta acentuada pelo sistema social e econômico atual, que
visa o lucro e a acumulação acima de tudo; que incita, portanto, a comparação e
a competição; nos torna os seres individualistas que os habitantes do mundo
utópico de Dostoiévski não entendiam como seriam, até se tornarem.
É perceptível também a crítica à Revolução Francesa,
que trouxe consigo os conceitos de fraternidade e humanidade – bem como os
valores universais. Essa Revolução se inseriu em um contexto de intensa
dominação do homem sobre o próprio homem; uma época na qual não existiam Direitos
Humanos e a exploração do trabalho era, até certo ponto, mais intensa do que a
vista hoje. Quando o autor fala que as pessoas “entenderam essas ideias”, ele diz,
ao mesmo tempo, que entender não
significa aplicar, aludindo, talvez, à falsidade que o homem ridículo
acredita ter desencadeado nesse mundo. Além disso, nesse momento começa a crítica que ele fará mais abertamente pouco
depois em relação ao conhecimento.
Não é à toa que logo após falar da fraternidade e
humanidade, o autor traz a ideia de justiça associada à força de repressão para
comprovar sua crítica à hipocrisia da
sociedade ao inventar e compreender conceitos, mas se recusar a aplicá-los,
pois não condizem com seus interesses reais. Uma crítica atemporal e muito
ampla. A sociedade é contra a violência, mas aceita que sejam violentados
aqueles que violentam. A sociedade fala em fraternidade, todavia nunca foi mais
individualista.
“Mas temos
a ciência, e por meio dela encontraremos de novo a verdade, mas dessa vez a
usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a
consciência da vida – é superior à vida”.
Essa frase, dita por uma das pessoas desse mundo
“deturpado” que surge em oposição à utopia, é um resumo espetacular do que
presenciamos todos os dias: a ciência
cada vez mais valorizada, vista como a possibilidade do melhoramento social, do
“progresso”. Não se explicita o que é essa “verdade” que pretendem
encontrar por meio da ciência, porém certamente ela está atrelada à ideia de
progresso e de racionalismo inerentes ao capitalismo.
Nesse momento, gostaria de fazer um paralelo dessa
parte do sonho com o livro de Immanuel Wallerstein, O fim do Mundo como o
Concebemos, no qual, no capítulo 10, ele afirma: “A fé da possibilidade de
melhoramento social foi o alicerce da modernidade. Deve-se enfatizar que não se argumentava que o indivíduo se
tornaria necessariamente melhor moralmente”. E é exatamente isso que está
acontecendo com esse mundo que o homem ridículo acredita ter pervertido. É o
que acontece no nosso mundo.
Há progresso, melhoramento social, todavia nunca se
fala sobre se tornar alguém melhor moralmente, pois o entendimento é superior
ao sentimento e a moralidade, até certo ponto, está mais associada aos
sentimentos.
O progresso é importante, a ciência também. Saímos de
situações supostamente ruins, atrasadas, mas nas quais era perfeitamente
possível viver (e durante muitos anos), caso contrário não estaríamos aqui. Mas
que bom que saímos! Que mundo atrasado era aquele! E que mundo atrasado é o nosso, que se preocupa mais em conhecer do que
em viver. Que se preocupa mais em
comprar o que não precisa do que doar para quem não tem. No qual o
conhecimento é o mais importante fator para determinar se uma pessoas é digna
ou não; erudita ou, simplesmente, popular.
Como estou imersa nesses valores, não sei se
conseguiria viver plenamente sem sentir estar sempre aprendendo, entendendo,
conhecendo. As pessoas descritas por Dostoiévski pareciam muito felizes com a
inocência, mas acho que essa não seria a solução de todos os problemas. E é
essa minha crítica ao autor.
Acredito que Dostoiévski estava muito preso à ideia
de que o conhecimento só traz tristeza; preso demais para refletir sobre os
diferentes tipos de felicidade, como o fez Bertrand Russell. Falei um pouco
sobre sua obra A Conquista da Felicidade em outro post, e hoje irei apenas retomar um ponto importante
apresentado por ele: existem dois tipos de felicidade, a do homem analfabeto e
a do homem alfabetizado. Cada um tem o poder de encontrar
felicidade plena a partir das escolhas que faz em razão de sua condição. Como
não estou tratando dessa obra no momento, quero só trazer aqui um grifo que fiz
do autor, também presente no outro post, e condizente com a discussão atual:
“Por que é mais efetiva a propaganda que incita ao ódio do que aquela
que promove os sentimentos amistosos? Evidentemente, a razão é que o coração
humano, tal como moldou a civilização moderna, está mais inclinado ao ódio do
que à amizade”.
E é exatamente nesse ponto que Dostoiévski toca
durante, basicamente, todo o conto. Na questão do “mal inerente ao homem e à
civilização”. E é por isso que sua mensagem é efetiva; porque hoje é mais fácil
aderir a mensagens que tratam da maldade, do ódio, independente de seu viés –
ou seja, não necessariamente a ideia da mensagem consistirá em um fim negativo
para a sociedade, mas se utilizará dessas imagens para garantir atenção,
direcionando o ódio ao comportamento criticado. O ódio, no caso desse conto, é
direcionado à atualidade, à sociedade e às pessoas, que assim como o narrador,
se sentiam indiferentes à vida. É, também, direcionado ao progresso, pois
defende que a verdadeira felicidade se encontra na simplicidade. É direcionado,
enfim, à humanidade em si, hipócrita, má e incapaz de amar ao outro tanto
quanto a si própria.
A mensagem que o autor tenta passar é positiva, todavia,
ele peca ao terminar a história com uma resolução, na minha opinião, básica
demais. O autor apela à religião como forma de encontrar a “verdade” e o
narrador do conto, o homem ridículo, passa a pregar; e assim continua o resto
de sua vida. Um conto com tanto potencial crítico, creio, poderia ter se valido
de um desfecho muito mais valioso, mas talvez isso seja porque, hoje, a ciência
domina o mundo com muito mais força, e explicações divinas, nesse mundo regido
pelas leis do conhecimento, não são mais suficientes. A razão desse desfecho,
contudo, se deve ao fato de Dostoiévski ter se tornado extremamente religioso
desde que se salvou do extermínio e recebeu uma “segunda chance” para viver;
todas as suas obras contém esse viés, inclusive, diz-se que Crime e Castigo
pode ser considerada uma de suas obras mais religiosas. E assim como não posso
culpá-lo por se inserir em suas obras, também não posso ser culpada por me
inserir em minhas leituras.
Por fim, deixo aqui um curta maravilhoso sobre a
obra, que foi capaz de retratar em imagens o que o conto não conseguiu
expressar em palavras. Uma adaptação incrível, dirigida por Aleksandr Petrov,
construída através de pinturas que captam muito bem a essência imagética do
conto. Esse curta foi produzido na Rússia, em 1992, e possui pouco menos de 20
minutos. Com certeza vale a pena assistir. E também vou deixar o link para um pdf do conto, caso alguém se interesse em conhecer.
Maravilhoso! Sempre que leio seus textos me surpreendo com a qualidade e profundidade, aprendi muito. Parabéns
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