14 de março de 2016

O pesadelo do homem moderno

Não é novidade que autores clássicos são atemporais. Nessa análise, vou falar sobre o conto O sonho de um homem ridículo, de Fiódor Dostoiévski, destacando determinados pontos para fazer comparações com os dias de hoje, levantando algumas reflexões e comentando as críticas feitas pelo autor em seu conto. 
(Imagem: Aleksandr Petrov)
Não é novidade que autores clássicos são atemporais. Nessa análise, vou falar sobre o conto O sonho de um homem ridículo, de Fiódor Dostoiévski, destacando determinados pontos para fazer comparações com os dias de hoje, levantando algumas reflexões e comentando as críticas feitas pelo autor em seu conto. Como sempre, o autor faz um ótimo trabalho ao penetrar as entranhas do ser humano e escancarar seu íntimo com uma narrativa avassaladora e reflexiva. Considerando, principalmente, as condições em que esse livro – e a maioria dos livros de Dostoiévski – foi escrito, ou seja, com grande pressão para receber dinheiro, pois essa era a única fonte de sua família, nessa época já muito pobre e devastada, é possível inferir que as críticas ao sistema capitalista e a necessidade de salvação através de Deus refletem apenas o que se passava no interior do próprio autor – o que não faz com que deixem de ser geniais.

No início da narrativa, a personagem, cujo nome nunca nos é revelado, já diz se considerar um homem ridículo, que sempre possuiu consciência desse fato. Isso, contudo, pelo menos por mim, foi ficando esquecido ao longo da história, todavia, é um fato de importante reflexão. Afinal, esse homem ridículo representa os pensamentos e angústias do homem comum; representa a indiferença que atribuímos à sociedade, tratando coada indivíduo como parte de um conjunto e não como um ser único.

Apesar de ser consciente de sua condição, em momento algum, pelo menos não explicitamente, é revelada a razão de ele se considerar ridículo; muito menos o porquê de também as outras pessoas pensarem assim. Só o que ele diz é que, apesar de saber ser ridículo, era orgulhoso demais para confessá-lo a alguém e que, ao amadurecer, foi se tornando indiferente ao mundo ao redor. E é essa indiferença que o leva a decidir se matar, todavia, deixa bem claro que até a essa decisão era indiferente.

Essa indiferença se assemelha em muito à situação de muitas pessoas, hoje, sempre. Quando a vida se torna só mais uma coisa da rotina, quando não parece importante ter objetivos grandiosos, ou atividades para distração, vai-se tornando indiferente.

Na noite em que escolheu morrer, quando o homem estava voltando para casa, deparou com uma menininha desesperada, que pedia ajuda. Indiferente, ele a ignora. Então, como é sua última noite de vida e, depois, nada mais vai importar, ele decide enxotá-la rudemente. Quando está sentado em frente ao revólver, prestes a cometer o tão esperado suicídio, ele sente compaixão pela menina. E se indigna com seus sentimentos; não só por ter sido indiferente por tanto tempo e agora ter demonstrado para si um sentimento, mas porque em poucos minutos tudo ia acabar, de que adiantava sentir?

Mergulhado em seus pensamentos, o homem cai no sono e dá início a um dos maiores sonhos já narrados na Literatura. Não é do interesse, para essa análise, resumir também o sonho, mas tratar de aspectos abordados nele pelo autor que escancaram as entranhas do “mal” da humanidade e, depois, fazer uma crítica à utopia por ele descrita. É importante, porém, ter em mente um esboço do mundo que ele descreveu: as pessoas eram boas, muito boas, viviam em paz e harmonia com os animais, e não tinham conhecimento das ciências que existem hoje, nem de qualquer coisa negativa, como mentira, hipocrisia. Acima de tudo, eles eram muito felizes, uma felicidade pura, que não estava sempre buscando conhecimento e metas para se estabelecer; era plena. O clímax do sonho se dá quando o homem ridículo acredita ter corrompido essa perfeição com a sua presença naquele “paraíso”.

Para essa análise, vou desconsiderar o viés religioso da obra e fazer algumas comparações com os dias atuais.

Inúmeras são as partes que me chamaram a atenção, porém selecionei apenas 4, para o texto não ficar grande demais e para que, caso você decida ler, possa fazer suas próprias reflexões sobre outros pontos sem a influência das minhas:

“Começou a luta pela separação, pela autonomia, pela individualidade, pelo meu e pelo teu.”
Quando se tornaram maus, começaram a falar em fraternidade e humanidade e entenderam essas ideias.”
“Quando se tornaram criminosos, conceberam a justiça e prescreveram a si mesmos códigos inteiros para mantê-la, e para garantir os códigos instalaram a guilhotina.”

Nessa parte do sonho, claramente, Dostoiévski faz alusões históricas em sequência, começando pela Antiguidade, passando pelo Renascimento, etc., e, mais adiante, à modernidade.

Essa luta a qual se refere o autor se tratava de outra muito anterior, mas é perfeitamente comparável à luta da modernidade. A luta por uma autonomia forçada frente à natureza, a separação do ser humano como superior. Uma luta acentuada pelo sistema social e econômico atual, que visa o lucro e a acumulação acima de tudo; que incita, portanto, a comparação e a competição; nos torna os seres individualistas que os habitantes do mundo utópico de Dostoiévski não entendiam como seriam, até se tornarem.

É perceptível também a crítica à Revolução Francesa, que trouxe consigo os conceitos de fraternidade e humanidade – bem como os valores universais. Essa Revolução se inseriu em um contexto de intensa dominação do homem sobre o próprio homem; uma época na qual não existiam Direitos Humanos e a exploração do trabalho era, até certo ponto, mais intensa do que a vista hoje. Quando o autor fala que as pessoas “entenderam essas ideias”, ele diz, ao mesmo tempo, que entender não significa aplicar, aludindo, talvez, à falsidade que o homem ridículo acredita ter desencadeado nesse mundo. Além disso, nesse momento começa a crítica que ele fará mais abertamente pouco depois em relação ao conhecimento.

Não é à toa que logo após falar da fraternidade e humanidade, o autor traz a ideia de justiça associada à força de repressão para comprovar sua crítica à hipocrisia da sociedade ao inventar e compreender conceitos, mas se recusar a aplicá-los, pois não condizem com seus interesses reais. Uma crítica atemporal e muito ampla. A sociedade é contra a violência, mas aceita que sejam violentados aqueles que violentam. A sociedade fala em fraternidade, todavia nunca foi mais individualista.

“Mas temos a ciência, e por meio dela encontraremos de novo a verdade, mas dessa vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida – é superior à vida”.

Essa frase, dita por uma das pessoas desse mundo “deturpado” que surge em oposição à utopia, é um resumo espetacular do que presenciamos todos os dias: a ciência cada vez mais valorizada, vista como a possibilidade do melhoramento social, do “progresso”. Não se explicita o que é essa “verdade” que pretendem encontrar por meio da ciência, porém certamente ela está atrelada à ideia de progresso e de racionalismo inerentes ao capitalismo.

Nesse momento, gostaria de fazer um paralelo dessa parte do sonho com o livro de Immanuel Wallerstein, O fim do Mundo como o Concebemos, no qual, no capítulo 10, ele afirma: “A fé da possibilidade de melhoramento social foi o alicerce da modernidade. Deve-se enfatizar que não se argumentava que o indivíduo se tornaria necessariamente melhor moralmente”. E é exatamente isso que está acontecendo com esse mundo que o homem ridículo acredita ter pervertido. É o que acontece no nosso mundo.

Há progresso, melhoramento social, todavia nunca se fala sobre se tornar alguém melhor moralmente, pois o entendimento é superior ao sentimento e a moralidade, até certo ponto, está mais associada aos sentimentos.

O progresso é importante, a ciência também. Saímos de situações supostamente ruins, atrasadas, mas nas quais era perfeitamente possível viver (e durante muitos anos), caso contrário não estaríamos aqui. Mas que bom que saímos! Que mundo atrasado era aquele! E que mundo atrasado é o nosso, que se preocupa mais em conhecer do que em viver. Que se preocupa mais em comprar o que não precisa do que doar para quem não tem. No qual o conhecimento é o mais importante fator para determinar se uma pessoas é digna ou não; erudita ou, simplesmente, popular.

Como estou imersa nesses valores, não sei se conseguiria viver plenamente sem sentir estar sempre aprendendo, entendendo, conhecendo. As pessoas descritas por Dostoiévski pareciam muito felizes com a inocência, mas acho que essa não seria a solução de todos os problemas. E é essa minha crítica ao autor.

Acredito que Dostoiévski estava muito preso à ideia de que o conhecimento só traz tristeza; preso demais para refletir sobre os diferentes tipos de felicidade, como o fez Bertrand Russell. Falei um pouco sobre sua obra A Conquista da Felicidade em outro post, e hoje irei apenas retomar um ponto importante apresentado por ele: existem dois tipos de felicidade, a do homem analfabeto e a do homem alfabetizado. Cada um tem o poder de encontrar felicidade plena a partir das escolhas que faz em razão de sua condição. Como não estou tratando dessa obra no momento, quero só trazer aqui um grifo que fiz do autor, também presente no outro post, e condizente com a discussão atual:

“Por que é mais efetiva a propaganda que incita ao ódio do que aquela que promove os sentimentos amistosos? Evidentemente, a razão é que o coração humano, tal como moldou a civilização moderna, está mais inclinado ao ódio do que à amizade”.

E é exatamente nesse ponto que Dostoiévski toca durante, basicamente, todo o conto. Na questão do “mal inerente ao homem e à civilização”. E é por isso que sua mensagem é efetiva; porque hoje é mais fácil aderir a mensagens que tratam da maldade, do ódio, independente de seu viés – ou seja, não necessariamente a ideia da mensagem consistirá em um fim negativo para a sociedade, mas se utilizará dessas imagens para garantir atenção, direcionando o ódio ao comportamento criticado. O ódio, no caso desse conto, é direcionado à atualidade, à sociedade e às pessoas, que assim como o narrador, se sentiam indiferentes à vida. É, também, direcionado ao progresso, pois defende que a verdadeira felicidade se encontra na simplicidade. É direcionado, enfim, à humanidade em si, hipócrita, má e incapaz de amar ao outro tanto quanto a si própria.


A mensagem que o autor tenta passar é positiva, todavia, ele peca ao terminar a história com uma resolução, na minha opinião, básica demais. O autor apela à religião como forma de encontrar a “verdade” e o narrador do conto, o homem ridículo, passa a pregar; e assim continua o resto de sua vida. Um conto com tanto potencial crítico, creio, poderia ter se valido de um desfecho muito mais valioso, mas talvez isso seja porque, hoje, a ciência domina o mundo com muito mais força, e explicações divinas, nesse mundo regido pelas leis do conhecimento, não são mais suficientes. A razão desse desfecho, contudo, se deve ao fato de Dostoiévski ter se tornado extremamente religioso desde que se salvou do extermínio e recebeu uma “segunda chance” para viver; todas as suas obras contém esse viés, inclusive, diz-se que Crime e Castigo pode ser considerada uma de suas obras mais religiosas. E assim como não posso culpá-lo por se inserir em suas obras, também não posso ser culpada por me inserir em minhas leituras.



Por fim, deixo aqui um curta maravilhoso sobre a obra, que foi capaz de retratar em imagens o que o conto não conseguiu expressar em palavras. Uma adaptação incrível, dirigida por Aleksandr Petrov, construída através de pinturas que captam muito bem a essência imagética do conto. Esse curta foi produzido na Rússia, em 1992, e possui pouco menos de 20 minutos. Com certeza vale a pena assistir. E também vou deixar o link para um pdf do conto, caso alguém se interesse em conhecer.

1 comentários:

  1. Maravilhoso! Sempre que leio seus textos me surpreendo com a qualidade e profundidade, aprendi muito. Parabéns

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