Um perfil da vereadora Amanda Gurgel
Como Capitu, seus cachos escondem indizíveis
segredos. A fala contida transpassa seu receio em deixar um deles escapulir sem
querer. Os lábios contornados de cor de rosa claro são moldura de um sorriso
belíssimo, de dentes alinhados e brancos, e estão sempre arqueados para cima.
Não tem qualquer reserva em relação a ser bem direta: não fala sobre sua vida
pessoal.
A assessora senta-se em uma cadeira ao lado da
escrivaninha pintada de cinza para acompanhar a entrevista. É uma sala pequena.
As paredes são brancas e lisas, com exceção da que se encontra atrás dela, essa
tem textura. E um quadro.
As cadeiras são acochadas e negras. Estão colocadas
de maneira um tanto peculiar, uma está voltada para a escrivaninha, a outra
para a parede ao lado. Ela reclama da temperatura, está quente. Olha para mim
com um sorriso sincero e conta que sempre procura abrir um espacinho na agenda
para atender aos estudantes de jornalismo que a buscam para fazer matérias. Mas
não fala sobre si.
A Amanda política é uma mulher forte, engajada e
honesta, o que é muito desgastante em seu meio de atuação. Para ela, não existe
a tentação de participar do meio ilícito pelo qual a política é mais conhecida.
É possível que isso se deva ao fato de sua infância ter sido simples, cheia de
dificuldades.
Seus pais exauriram suas forças buscando uma maneira
de manter a família, até que seu último suspiro foi dado, antes mesmo que a
plena razão pudesse iluminar a mente de sua pequena Amanda. Ela foi criada
pelos tios, em uma experiência que poderia ter sido diferente, mais cheia de
amor e carinho, se seus pais estivessem lá.
Sofrer com tamanha perda tão jovem
logo a fez ficar ciente da fluidez das relações humanas. As pessoas mudam, o
tempo passa, as amizades acabam. E é assim que procura viver, desprendida de
outras almas, tendo como alicerce sua paixão pelo que acredita, sua vontade de
mudar o mundo e acabar com tudo de ruim que existe nele.
Desde jovem gostava muito de ler. Enquanto todos os
seus colegas do ensino médio sofriam com as aulas de Literatura, ela as
assistia com verdadeira paixão e lia os livros não porque o professor mandou,
mas porque os amava. Hoje sente falta de seus autores tão queridos, como Graciliano,
Clarice e Lygia. Pessoas tão especiais que nem precisou conhecer para se sentir
próxima, mas infelizmente pessoas, que como todas as outras são fluidas, e
acabaram por deixá-la. "Eu sinto muita falta de ler!", diz com
vivacidade nos olhos. E repete um "muita" para sua assessora, para
que ela se assegure da veracidade de seus sentimentos. Agora, com sua rotina
corrida, precisa ler menos. Uma pena.
A escolha de sua profissão foi um tanto apressada, e
ao mesmo tempo natural, obra do destino até. Os testes vocacionais apontavam
que sua "área de atuação" estava restrita a duas opções: a docência de
letras ou a comunicação. Se a universidade na qual prestou vestibular primeiro,
a UEFS, contasse com o curso de Jornalismo em sua grade curricular, admite que
teria passado por um sério desconforto com sua mente no momento de tomar a
decisão. Mas não tinha, porque não era para ser.
Um fator extra impulsionava sua vontade de prestar Letras:
uma professora, Claudina, que admirava muito. "Eu queria ser igual a
ela". Ela era professora de espanhol. Então, inspirada, Amanda
inscreveu-se no vestibular para Letras - Espanhol, cultivando a mesma crença
que muitos estudantes têm ao ingressar nesses cursos, a de que se poderia
aprender a língua durante a graduação. Logo nos primeiros meses, ela aprendeu
que já era preciso um certo domínio da língua, pois o curso era apenas um
caminho para dominar seus usos. “Eu até que fui bem, mas precisava trabalhar e
estudar”.
Quando se mudou para Natal, decidiu prestar um novo vestibular, mas para
Letras – Português. E foi na UFRN que sua vida de militante começou
verdadeiramente. Antes, quando ainda morava no interior, em Poções, nem passava
por seus pensamentos a existência de algo relacionado a movimentos estudantis.
Foi só em Feira de Santana que teve esse primeiro contato, breve, contudo
significativo.
Na época em que iniciou seu curso na UFRN, os professores estava prestes
a entrar em greve e ela percebeu que a maioria dos estudantes sequer sabiam as
razões que os levara a fazê-lo. Inaceitável! E para piorar, o seu curso não
tinha um Centro Acadêmico. Bom, havia muito trabalho a fazer e pouco tempo para
isso. Tratou de organizar com sua turma um C.A. para seu curso com o apoio do
D.C.E. e foi nessa época que suas conquistas começaram.
Morava na Residência Universitária e dividia quarto com outras quatro
meninas. A convivência era boa entre elas e as outras 19 meninas que habitavam
o conjunto (no total eram 24). Os detalhes são pessoais demais. Todavia as
conquistas não, essas são públicas, e vigoram e beneficiam estudantes até hoje.
Depois de diversos anos de luta, a geração dela finalmente conseguiu
conquistar o café da manhã para os residentes. Não pode ser coincidência que
após mais de 18 anos de luta a vitória só tenha chegado junto com ela.
Seus olhos contornados com lápis de olho preto cintilam ao lembrar desse
momento, entretanto, recusa-se a admitir que sua presença tenha sido
significativa para o acontecido, humilde. A partir daí, estava feito. O adesivo
colado em sua camiseta de botões cor de ébano, perfeita para disfarçar o busto
avantajado, revela uma das bandeiras que levanta em nome de seu partido. Revela
uma necessidade de lutar pelo que acredita. Revela a Amanda Política.
Mas e a Amanda cidadã? A Amanda do dia a dia? Essa se esconde por trás
de redondos cachos castanhos, dentro de sua própria casa. Ama ficar em casa,
infelizmente a correria de sua vida impossibilita que isso aconteça com a
frequência que deseja. Impossibilita que a Amanda possa desvincular-se por
algumas horas do seu eu político para aproveitar os momentos com as amigas, que
tanto a cobram e brigam por causa de sua ausência, e com a família. Essa Amanda
que ama ir à praia e comer chocolate, muito chocolate, não pode se deixar
transparecer demais, precisa manter a compostura.
Sua rotina é imprevisível, não tem hora para começar nem para terminar.
E ainda exige grande preparação psicológica. Isso porque não é fácil para a
Amanda Política segurar a Amanda cidadã comum quando seus colegas vereadores tentam
desmoralizá-la nas sessões da câmara. É difícil se controlar, manter a calma,
não dizer o que realmente gostaria. É difícil não ser só a Amanda.
O significado de ser só a Amanda ainda continua um enigma indecifrável.
Ser só a Amanda pode ser viver sem ambições, como ela conta, sendo inclusive
esta a razão para não se sentir tentada à participar dos esquemas ilícitos da
política. Ela não domina a arte da imaginação, do planejamento, da visualização
do futuro, por isso não tem projetos.
Talvez a Amanda tenha, entretanto ela é mantida bem guardada, bem
caladinha, só se mostrando de vez em quando durante a entrevista, quando a
vereadora se descuida e deixa escapar um pouco mais. É difícil ter que se
guardar, todavia é necessário.
As mãos delicadas, com unhas tingidas de vermelho
vinho, estão ausentes de aliança. Seu amor não está em outra pessoa, ele está
refletido na sociedade e nela mesma. Seu amor é a luta pelos direitos, pelas pessoas.
Ela começa a ficar inquieta, checar o relógio. Tem um
reunião em 15 minutos. O tempo acabou.
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