4 de setembro de 2015

O túnel

(Foto: Revista Vila Nova)

Há um túnel na sociedade, que age como funil e separa as pessoas entre as que decidem atravessá-lo e as que preferem procurar alternativas mais cômodas. Jamais ultrapassar esse túnel significa ignorar a vida inteira a realidade social na qual se está inserido, significa colocar um funil ao redor do pescoço e esquecer que existem pessoas e pessoas, diferentes, felizes, tristes, cansadas, vivendo suas vidas, atravessando túneis.

Não se pode culpar os que decidem não atravessar, contudo, pois é mais fácil mesmo, e, inclusive, os próprios peregrinos de túneis, muitas vezes, prefeririam não o ser. Eles também têm seus funis, às vezes vendas sob os olhos. Mas não foram eles que escolheram colocá-los, foram os outros.

Quem coloca essas vendas, geralmente, é quem não atravessa o túnel. Impõe  suas opiniões cegas sobre os andarilhos e eles apenas as aceitam, sem questionar, subordinados que se consideram por precisarem atravessar túneis para viver. Com suas vendas e funis, os passantes, portanto, não conseguem mais aproveitar a beleza de sua travessia, perceber as minúncias de um passeio pelo túnel. Se boas ou ruins, caberia a eles decidir, no entanto, primeiro é preciso se despir dos preconceitos contra si próprio.

Um dia, uma menina decidiu despir-se por um momento, e, finalmente, descobrir qual seria a realidade desse túnel que precisava atravessar todos os dias.

Em um primeiro momento, seus olhos só viam um brilho esbranquiçado e intenso. Ela precisou fechá-los, esperar uns instantes para se acostumar com a claridade rara, antes amainada pela venda. Então, ela viu.

O túnel era mais largo e mais comprido do que se lembrava, mais abarrotado do que parecia possível. Percebeu que estava em pé, mas não só ela, a maioria das pessoas também estava. Todos carregavam o cansaço em seu semblante, o tédio... Ela decidiu examinar mais minunciosamente. Conseguiu, por fim, ver alegria, animação, todavia também viu tristeza, pesar. Em um momento achou ter visto malícia, contudo preferiu desviar o olhar a descobrir.

Olhou para baixo e mais uma vez viu a tristeza. E também viu um espelho, caído aos seus pés. Nesse momento, seu corpo movimentou-se de uma maneira não planejada; caiu, de joelhos, ao lado daquele espectro de tristeza.

Lágrimas cristalinas escorriam silenciosas sob uma face cor de ébano. Os olhos apontavam para o chão e demonstraram leve surpresa ao ver a menina cair bem ali de joelhos. Todo o seu corpo, então, arrepiou-se quando, surpreendentemente, a menina lhe dirigiu a palavra. Piscou. Não sabia se era consigo, não podia acreditar.

“Você está bem?”, perguntou a dona de uma voz doce.

“N-não...”, respondeu em voz baixa e fraca.

“Qual o seu nome?”, insistiu a moça.

“... Todos me chamam de... Carvão...”, sentiu um nó se formar na garganta.

“E você gosta que te chamem assim?”

“...”, ela não conseguia responder. Seria demais para si mesma admitir que todos os dias até aquele tinham sido de sofrimento, de preconceito, de acuamento.

“O meu nome é Maria”, disse a menina sorrindo. E a outra sentiu uma felicidade forasteira invadir seu coração, forte o suficiente para lhe dar coragem de responder.

“Meu nome... meu nome é Zanura. Mas... Ninguém me chama assim...”

“Você gostaria que te chamassem?”

“Acho que sim...”

As duas meninas sorriram uma para a outra e uma conversa quase sem fim se iniciou. Atravessaram o resto do túnel juntas, e saíram para explorar um mundo jamais visto.

*

Todos no túnel perceberam as duas meninas conversando, excerto um homem, vestido com um paletó encardido, remendado em vários lugares, que usava um perfume barato e tinha os cabelos mergulhados em gel, na tentativa de acalmar sua natural selvageria, que tentava atravessar o mais rápido possível, empurrando a todos, ignorando grunhidos e reclamações. Sequer as teria notado se não tivesse, no momento em que passou por elas, derrubado o relógio que levava em sua mão. Ele precisava ter a corrente consertada, mas por mania de ver as horas o homem o levava na mão o tempo inteiro. E quando esse objeto tão precioso caiu no chão, bem ao lado de uma menina ajoelhada, o homem sentiu o corpo estremecer.

Jogou-se no chão para apanhar seu valioso marcador de tempo e, ao segurá-lo no meio de suas mãos trêmulas, não se achou mais capaz de levantar. Estava quebrado. Os ponteiros não corriam mais, parecia que tudo estava parado, parecia que tudo estava acabado.

Atônito, o homem se levantou e apertou o relógio na mão esquerda. Então soltou. E correu.

De mãos vazias, pingando o cansaço de sua pequena maratona e o esforço de arrancar sua venda e remover o seu funil, ele abriu a porta do pequeno apartamento e entrou. Caiu de joelhos. Sua mulher e filhos, surpresos, caíram a seus pés e ele os ajudou a remover as vendas, os funis, e da esposa também as correntes. Eles, então, choraram, e o homem pediu perdão. Estavam felizes, mais do que nunca, pois sabiam que estava acabado.

O homem respirou fundo, sacou um revólver do bolso, fixou o cano em sua têmpora direita e puxou o gatilho.


*

Em um local próximo, duas meninas passeavam de mãos dadas, conversavam sobre tudo, contavam todos os seus causos, conheciam-se.  Uma poderia ser feita da mais pura neve, enquanto a outra parecia ter caído do mais tranquilo céu durante uma noite estrelada. A combinação mais bonita, mais contrastante, mais real. Então ouviram um tiro. Entreolharam-se.

“Parece que outras pessoas também arrancaram seus funis”.

“E puxaram suas vendas”.

“Será que agora vai ser diferente? Vamos encontrar outros?.

“Não seja inocente, enquanto houver túneis no mundo, haverá gente para fabricar funis e mais gente ainda para colocar vendas sobre os olhos do próximo”.

“Mas eu consegui sair, você também. Como?”.

“Nossos olhos ainda são verdes. O resto do mundo, a maioria, já amadureceu”.

“Há outros olhos verdes por aí!”.

“Quem sabe, não é? Só podemos torcer para que não sejam vendados cedo demais...”.

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